VIDAS CRUZADAS - PARTE I
PARTE I
Palmas ouviram-se dentro da casa grande ao mesmo tempo em que os batuques soavam na senzala. A comemoração era a mesma. Meninos vinham ao mundo, em lugares tão diferentes, em circunstâncias tão distintas, em alegrias tão iguais. Na casa grande chegava Felipe e na senzala, Manoel. A vida acontece em todos os cantos e traz sempre o mesmo vigor. O que se vive é como um rio num pântano, com múltiplas possibilidades de idas e vindas, caminhos tão diversos. Dois nascimentos, dois destinos, duas vidas. Aquela noite de luar iluminou sorrisos e lágrimas, esperanças e desejos, angústias e anseios.
O sol chegou e apanhou a casa grande silente e a senzala em sorrisos. Assim são as festas e as comemorações. Uma vida nova é sempre uma grande bênção vinda do céu e uma esperança de que o caminho que a ser seguido seja diferente daqueles que lhes deram a vida. Anselmo e Luzia, Francisco e Isabel estavam felizes e ambos tinham suas preocupações. Naturais, em cada circunstância.
Corria o ano de 1846 quando vez primeira Felipe, ao sair para passear nos jardins da casa grande encontrou-se com Francisco. Ambos tinham quatro anos, mas nunca haviam cruzado o caminho um do outro. É bem provável que já se tivessem visto, mas nunca haviam conversado. O menino branco estava com roupas finas, alvas, em contraste com seus suaves cabelos pretos. Iriam para uma carruagem que os levaria à cidade para passear e participar de festejos religiosos. O negro menino havia, numa estripulia, avançado o limite do território da senzala e do espaço dos escravos. Era um menininho sorridente, que pulava e se jogava ao chão, no lindo gramado que até então ele só havia visto e admirava. Pulava, caía ao chão, apalpava aquela grama macia e dava gargalhadas. E altas gargalhadas. Tanto que chamou a atenção daqueles que estavam indo passear.
__ Olha papai – apontou Felipe em direção ao menino – veja aquele menino brincando... Eu quero brincar na grama com ele...
__ Ande logo, entre aí na carruagem. E faça silêncio – respondeu bruscamente o pai.
E virando-se para o capitão do mato ordenou:
__ Retire aquele menino de lá e castigue o pai dele.
Entraram na carruagem depois do “sim senhor” do capitão. Gonzáles era espanhol e morava na fazendo de Anselmo desde jovenzinho. Havia fugido do outro lado do mundo, como ele dizia. Ninguém sabia ao certo de onde ele viera. Ele era alto, moreno, forte e sádico. Gostava de ver o outro sentir dor e de provoca-la. Executava os castigos com satisfação e até mesmo com prazer. Dirigiu-se à senzala aos gritos.
__ Onde está o Francisco? Onde está o pai daquele negrinho ali no gramado? Retire-o de lá, imediatamente.
Ao ouvir os gritos do capitão, Isabel que estava próxima, lavando roupas no riacho saiu correndo. Estava tão distraída que não percebera que o menino havia saído de perto dela e estava no gramado. Ao chegar próximo à cerca, gritou pelo pequeno Manoel que sorria e gritava mamãe, abrindo os braços em sua direção. Correu ao encontro dela que estava em lágrimas, vendo Gonzáles se aproximar.
__ O que esse moleque faz aqui sua negra atrevida! Donde se viu esse negrinho brincar no espaço do sinhozinho Felipe...
E com o chicote em mãos deu umas três chibatadas na pobre Izabel que só protegia o filho e implorava perdão. O capitão deixou que ela fosse e esperaria o pai para cumprir as ordens do patrão.
Já o ocaso caía e pintava a tarde com as cores do outono, num laranja que se distribuía pelo horizonte em tons variados, que combinados com o cantar dos pássaros trazia uma paz que silenciava o canto dos escravos no caminho de volta para a senzala. Era um horizonte de campinas, com uma serra azulada ao fundo, que chamavam de Serra da Saudade, que ainda hoje suspira murmúrios de admiração para quem anda pelo oeste de Minas Gerais. Alheio ao que lhe esperava, Francisco caminhava com seus irmãos de sina para a sede da fazenda.
A casa grande possuía dois andares, acima de um porão. A entrada era parecida com a de um palácio, com uma escadaria em pedras e um corrimão de ferro, vindo de Portugal com motivos florais. Ao fundo, um pouco escondida num declive do terreno ficava a senzala. Um barracão comprido, janelas poucas e duas portas, não muito mal feita para não deixar feio o conjunto, mas sem conforto algum, onde se amontoavam os escravos tantos que Anselmo possuía. Agregado à casa uma capela nem um pouco modesta, com um altar central com retábulos folheados e ouro e cinco imagens sacras, destacando-se ao centro a de Santo Antônio, padroeiro da fazenda.
A beleza construída era emoldurada por campos e um riacho que, ao fundo da senzala, corria suavemente por entre pedras, lugar preferido das crianças da senzala. Ao lado, rodeando a senzala uma pequena faixa de grama com flores silvestres, obra de uma velha escrava.
Este cenário por si só é uma poesia. Mas não é assim que se espelha a realidade. Quando apontaram no horizonte os escravos que vinham das lavouras, Gonzáles tomou postura ereta, firmou o corpo e esperou que chegassem solenemente. Quando se aproximaram, já perceberam que algo estava diferente naquele dia. Isabel tinha um rosto lacrimoso, o que deixava no ar uma sensação de perigo.
__ Ó Francisco, queira se dirigir ao tronco.
__ Mas porque senhor capitão? Que fiz para merecer tal castigo?
__ Ora seu negro insolente – disse pigarreando e com os olhos vermelhos de sadismo – desde quando se questiona ordens do patrão? Ande. Calado.
Nisso um burburinho se fez entre os escravos, como reação contrária. Inútil, no entanto. O escravo foi colocado no tronco, e num gesto de misericórdia foi açoitado com as roupas ao corpo e com as vinte chicotadas de sempre. Foi retirado em seguida e levado para a senzala por Isabel. O pequeno Manoel foi poupado dessa cena macabra, brincando inocentemente ao fundo, perto do riacho.