O Homem Que Nunca Traiu
Eu tentei dizer a ela. Tentei explicar a situação porque já não aguentava mais vê-la alheia a tudo e fazendo papel de idiota. Trinta anos de amizade e jamais pude imaginar que me veria em uma situação tão absurdamente desconfortável.
Naquela manhã ensaiei as mesmas falas mais uma vez. Tinha passado da hora. Tinha deixado de ser conversa em mesas de bar e fofocas sussurradas em corredores para adquirir um ar de pena, de compaixão e até de desprezo por alguém que não tinha atitude diante da situação.
Em muitos momentos interceptei olhares de deboche e sorrisos maldosos de quem, no instante seguinte, se aproximava e a beijava no rosto como se nada estivesse acontecendo.
Ela havia se transformado na coitadinha, na tola que ria inocentemente nas nossas reuniões; na equivocada que defendia pontos de vista e emitia opiniões; convicta de que com ela, determinadas situações jamais ocorreriam.
E como um plágio da piada popular, todos sabiam... Menos ela.
Por isso eu havia tomado a decisão, e, por mais terrível que fosse, daquela noite não passaria. Eu encontraria uma forma, uma brecha nas nossas habituais reuniões de sexta-feira, a puxaria para um canto e contaria tudo... Ou ao menos a maior parte.
Minha única dúvida era se deveria abrir o jogo logo de cara ou começar uma conversa amena querendo saber como ela se sentia, como estava o casamento...
Talvez o correto fosse isso mesmo, tocar no assunto de leve ou apenas conversar bobagens até que ela dissesse alguma coisa do tipo "ele mudou de uns tempos para cá" ou "minha vida tá um tédio". Aí então eu entraria, faria uma ou duas perguntas e iria direto ao ponto.
Eu nunca havia feito aquilo, mas sabia que, na maioria das vezes, quem havia feito o papel que eu agora estava prestes a desempenhar, tinha se dado muito mal. Mentirosa, falsa, dissimulada, vagabunda...
Estes seriam alguns dos adjetivos que, com certeza, em algum momento, seriam dirigidos a mim. Mas o fato é que eu já não aguentava mais. Ela era minha amiga, como uma irmã. Crescemos juntas, ficamos bêbadas a primeira vez juntas, choramos madrugadas afora e brigamos pelo mesmo cara na faculdade. Ela era minha madrinha de casamento e eu a dela. E era justamente por todas e tantas outras coisas que eu queria alertá-la. Queria dizer finalmente que ela era sumariamente e sistematicamente traída. Que ele, o marido, aquele ser que ela idolatrava e por quem "colocava a mão e o corpo inteiro no fogo" era um canalha de marca maior e tão infiel quanto um cachorro de rua.
Mas não era fácil. Não era confortável para mim e nem seguro. Com certeza ela reagiria, perguntaria como eu sabia, iria querer provas, fatos e isto seria a morte para mim.
Se eu fosse revelar toda a verdade, eu também sucumbiria. Também rolaria naquele mar de promiscuidade e ela veria a mim, sua melhor amiga como coadjuvante incontestável daquele teatro hediondo.
Quando a noite chegou e olhei no espelho nos últimos retoques da maquiagem, vi certa coragem. Falaria!
Duas horas depois quando o vinho já transformava o humor de quase todos do grupo, eu a chamei. Inventei uma desculpa qualquer e parti com ela para um cômodo que servia de escritório, despejo e raramente, canto de meditação.
Ela me olhou meio bêbada, dando risada de alguma piada que eu não tinha ouvido e dizendo que tinha que ir ao banheiro.
Fechei a porta e esperei que ela parasse de rir. Segundos depois ela me encarou limpando os olhos manchados pelas lágrimas do riso e perguntou qual era a fofoca.
Falei que não se tratava de fofoca, que tinha algo importante para dizer.
Lembro-me do sorriso dela desaparecendo e do rosto tentando encontrar uma expressão de seriedade no meio do efeito do álcool.
E então eu falei e, ao contrário do que havia imaginado e ensaiado, não consegui falar nada ameno. Fui direto ao que interessava: "Paulo trai você!"
Ela não moveu um músculo, apenas arregalou um pouco os olhos. Fiquei sem saber o que fazer e ponderei se ela tinha me ouvido: "Paulo tem outra pessoa".
Vi uma torção no rosto imitando um sorriso, depois vi a incredulidade e por fim, a dor nos olhos.
Como você sabe? Ela falou tentando parecer indiferente.
Sabendo. Simplesmente sabendo. Respondi me sentindo desconfortável.
Ela riu e balançou a cabeça como se eu tivesse dito uma coisa muito idiota.
Você não tem como saber! Ela retrucou aumentando a voz. Sua vida se resume a sua família! Você não sai de casa! Você só conversa com aquelas pessoas que estão na sala! Você nem está em uma rede social, então como poderia saber da vida do meu marido?
Eles também sabem, falei baixinho.
Ela ficou imóvel olhando para mim enquanto digeria a informação.
Todos eles?
Sim, todos. Respondi começando a sentir minha cabeça latejando. E também no seu prédio. E as pessoas do seu trabalho. Desconfio até, que sua mãe e irmã.
Ela suspirou longamente olhando para a mão esquerda onde estava a aliança.
Eu não acredito. Paulo jamais faria isso. Ele é um homem decente!
Eu percebi o tom de desespero na voz dela, mas se já havia chegado até aqui, não pararia: Paulo vem traindo você desde que se casaram. Ele teve vários casos, mas o último é mais sério.
Vi a raiva no rosto dela enquanto vasculhava o meu à espera de mais alguma coisa. Eu não disse nada. Esperei que ela perguntasse, que me espremesse para eu poder contar e me livrar daquele sentimento terrível que eu já havia identificado como uma mistura de culpa, remorso, raiva, nojo...
Então você sabe quem é! Ela falou como quem finalmente compreendia tudo.
Sim. Sei.
Não tive tempo para me defender. A bofetada veio com gosto de sangue e de surpresa. Os tapas vieram com unhas, palavras de ódio e respingos de saliva. Quando finalmente consegui levantar os braços para me defender, ouvi sons de vidro sendo partido e de gritos vindos da sala.
Muitos meses passaram depois daquela noite. Nunca mais a vi. Nosso grupo se desfez, a amizade acabou, meu casamento também.
Guardei uma cicatriz na perna esquerda como recordação do vaso quebrado e do tombo que levei enquanto ela tentava me matar a pontapés.
Recentemente soube que havia se separado. Pensei em ligar para ela no meio da tarde, convidar para um chope no fim do dia, dar umas boas risadas como nos velhos tempos e colocar uma pedra sobre aquilo tudo, mas não o fiz. Ainda havia muita mágoa em mim e provavelmente alguma vergonha nela agora que tudo estava esclarecido.
Paulo ainda me visita de vez em quando. Sempre chega com a desculpa de que precisa pegar alguma coisa. Fica por alguns minutos, tenta ser gentil, faz piadas e tenta levar a conversa para uma reconciliação entre todos. Não quero. Não porque eu seja orgulhosa ou coisa do gênero, mas simplesmente porque ainda não me acostumei a vê-lo chamando meu ex-marido de "amor".