ASSIM ME CONTARAM - FINAL
PARTE IV
Bento dirigia-se novamente à igreja e parou, olhando fixamente para baixo e vendo Conceição que falava com Bernardo e ao mesmo tempo Ana repreendendo-a. Chamou-a para voltar e pensou vezes mil a perguntar sobre os motivos da repreensão entre outras coisas. Mas calou-se.
Os soldados observavam a tudo atentamente. Ana parecia tensa e preocupada. Chegando à igreja:
__ Sinhá Marília, vamos pra casa, durma um pouco. Eu a acompanho...
__ Não vou não, Ana. Fica aqui comigo. Eu me desespero só de pensar que amanhã não vou mais ver meu Junqueira – e chorava.
Por um momento, Bento condoía-se ao ver o sofrimento de sua mãe, e chorava silenciosamente em seu íntimo. Preocupava-se com Bernardo. Ouvia a mãe murmurar infâmias ao negro, mas não conseguia sentir raiva. Bem lá no fundo ele sabia da inocência do escravo. Tentava ouvir a si mesmo e tentava juntar as partes que já eram conhecidas. Não estava muito preocupado em descobrir quem havia matado seu pai, mas queria mesmo era provar que não foi aquele que um dia passeou com ele na infância, por sobre as pedras do riacho.
Era já madrugada adentro, quando, na cozinha ouviu-se choro. Era Francisca, amparada pela silente Joana. Ela havia tido uma crise de choro. Ela estava deitada no colo da escrava que lhe auxiliara na cozinha. O trabalho já havia terminado, tudo já estava limpo assim como preparado estava para servir um café pela manhã. Isabel apenas observava. Apesar de não ser tão silenciosa, calou-se. Era escrava entendida e observadora. Já havia ouvido alguns rumores na senzala e também visitara Bernardo para lhe levar um pouco de comida às escondidas.
__ O Bernardo vai morrer – gritava Francisca – meu Deus do céu, tá errado, ele não matou o coronel...
Joana a embalava como a uma criança. Falava baixinho ao seu ouvido:
__ Não vai não, não vai morrer não, Deus é mais. Fique calma Francisca, fique calma minha irmã. Fique calma, fique calma... – e repetia em cochicho que ia acalmando a cozinheira.
Reinava um grande silêncio naquela madrugada que esfriara, apesar do intenso calor do dia. Qualquer ruído parecia um grito no meio daquele espaço tão serenamente silencioso. Apenas cochichos e especulações que ninguém conseguia ao certo compreender.
__ Ana, você viu o Junqueira morrer, certo? – Era um dos soldados conversando com a escrava de confiança da sinhá.
__ Bom – disse meio gaguejando – eu estava com a sinhá e depois subi com ela, na correria. Eu vi o coronel tentando apontar para quem o matou, mas não vi nada além disso.
__ Sabe onde estava o facão que o matou? Ele era mesmo de Bernardo?
__ Sim, o facão estava ao lado, sujo de sangue. Bernardo estava perto, mas não foi ele.
__ Mas – disse o soldado com as mãos ao rosto e franzindo a testa – de onde você tem tanta certeza? Você tem dito que não foi ele. Ora, se não foi ele, você deve saber quem foi. Sabia que você é suspeita?
__ Ora, suspeita, eu? Eu estava com a sinhá na hora do assassinato! E o escravo não ia pedir socorro antes que ele morresse. O coronel poderia dizer...
__ Bom, Ana, você sabe que ele não poderia falar por causa do corte no pescoço. E além do mais, você estava com a sinhá quando deram o grito, e não quando ele foi atingido. A distância não é tão grande assim escrava.
__ Está pensando que eu matei o coronel, soldado? E ainda mandei o Bernardo chamar? Ora...
__ Não estou acusando, só estou pensando.
__ Pois que pense! Eu não matei, e o Bernardo também não foi.
__ Filho, já está quase amanhecendo, você não dormiu.
__ Não se preocupe mãe, vou ficar com a senhora. Quando a senhora decidir sair um pouco, estarei ao seu lado.
E choraram juntos, enquanto o padre cochilava numa cadeira próxima e uma senhora piedosa rezava um terço entre um cochilo e outro.
Joana havia acalmado Francisca. Cozinheira a três anos da casa grande, tinha estima pela sinhá Marília e vivia desconfiada de Ana. Ana não era bem vista entre os escravos. Por causa da proximidade e do excesso de confiança de Marília, às vezes abusava da situação e acabava dando ordens aos outros. Mas, no fundo, sabia de sua condição de escrava e que tudo só era assim por causa da sinhá.
Bernardo desfalecia e escurecia sua visão num paradoxo com a beleza do alvorecer. O sol, que desperta a vida no planeta e faz com que todos abram os olhos para um novo dia, fechava os olhos do escravo, que imerso em dores tantas, fechava os olhos para este mundo. E como numa profecia, iria para o túmulo antes mesmo do coronel.
__ Maldita! Maldita! Maldita! – eram os gritos da escrava Conceição dirigidos à Marília – Maldita! Você matou o Bernardo! Maldita seja!
Ouvindo os gritos, Joana, a silente, correu logo e abafou-a, contendo-a.
__ Calma minha amiga, ele descansou e foi viver com Deus e Nossa Senhora. Melhor pra ele que não está mais nesta vida. Deixe-o em paz.
Achegaram-se vários escravos e cantavam cantos de morte. Celebrava-se outro funeral. O corpo do escravo foi levado para a senzala para os preparativos. Joana voltava para a cozinha, para juntamente com Isabel e Francisca prepararem o café. Elas não tinham o direito de velar o companheiro.
__ Sinhá – disse Ana, baixinho – a senhora me desculpa, sei que não é hora, mas tenho que lhe contar uma coisa...
__ Não quero saber de nada Ana – interrompeu Marília – eu não quero...
E antes que pudesse continuar Ana soltou logo a palavra:
__ Bernardo morreu.
Silêncio. Vários ouviram, devido ao silêncio do lugar. Marília, que parecia meio adormecida, como que acordando bruscamente gritou:
__ O quê? Aquele negro assassino morreu? Não pode ser...
Nisto chegou Bento, retirou a mãe do lugar e procurou acalmá-la, ele que também estava surpreso com a morte do escravo. Imaginava poder convencer a mãe de que ele não era o assassino e assim pudesse fazer algo para recuperá-lo. Mas no fundo sabia mesmo que ele não sobreviveria. Já havia sido espancado semana anterior e não estava bem, conforme lhe contara Francisca. Segurou o choro para não incomodar a mãe, que não se conformava. Pensava ela que ele era mesmo o assassino, mas planejava torturá-lo ainda mais e lhe fazer dizer o que ela queria ouvir. Talvez o negro soubesse disso e pediu a Deus que o levasse antes de tão grande mal, sendo atendido prontamente.
A senzala enlutou-se por Bernardo e levou seu corpo para o cemitério onde se enterravam os escravos, bem longe, por detrás da capela. Normalmente iriam pelo caminho que sobe da casa grande, mas por causa do velório do coronel, atravessaram o mato com o corpo daquele que era um bom amigo para todos.
Marília estava na casa e aproveitou o tempo para comer algo na companhia de seu filho. Um simples café e um pequeno pedaço de bolo feito por Isabel. Francisca estava por demais transtornada com a morte de Bernardo e não conseguia se concentrar em nada, dizia a auxiliar da cozinheira. Joana havia ido jogar água embebida de ervas, e dizer algumas palavras de despedida ao falecido escravo. O fez rapidamente e voltou para a cozinha, pois era a única que sabia a intensidade da dor pela qual Francisca passava. E temia por isso.
__ Francisca, minha irmã – era Joana – tente se acalmar, não vai adiantar mais ficar tão nervosa assim, ele se foi.
__ Não pode Joana, não é justo, por que ele não contou Joana, por que não contou?
Essas doídas palavras de Francisca se justificavam pelo amor que sempre nutrira por Bernardo. Era um amor de pai. Aliás, Bernardo sempre foi como um pai para todos. Já mais velho, Francisca se lembra do dia que ele chegou. Era ainda criança e este lhe abraçou e sorriu dizendo que iria cuidar de todos eles. E da maneira dele sempre o fez, sempre amável e sempre bondoso.
Ana aproximou-se da cozinha, aproveitando que Marília estava acompanhada do filho e o cadáver contava com a companhia do padre, das piedosas senhoras rezadeiras, dos vizinhos e parentes. As escravas quase já terminavam o almoço àquela hora, para os quase cinquenta presentes no velório. Olhou para as cozinheiras e Joana olhou-a a contragosto sem mover a cabeça. Ana parecia intimidar aquelas que ali estavam. Mas não.
__ Francisca, Bernardo está enterrado, o coronel Junqueira daqui a pouco. Há lamento na senzala, e eu... Bom, eu acho que vão me prender pelo assassinato dele. Os soldados tem certeza da minha participação na morte. Eu estava com a sinhá Marília, mas corri assim que Bernardo gritou. Eu o vi morrer, e agora vou pagar por isso.
Isabel não entendia nada. Joana interrompeu aquilo que parecia um discurso:
__ Não vai não Ana. Sinhá Marília sabe que não foi você. Ela não há de deixar.
Os olhos de Ana enchiam-se de água, ela os enxugou e saiu. Ninguém na verdade entendeu porque Ana dissera aquilo. Ainda mais Francisca, que recebera a notícia da morte do coronel por Ana, que por duas vezes visitou Bernardo e tentara descobrir dele se ele sabia do que havia acontecido. E Francisca saiu, iria ajudar a servir o almoço.
E houve silêncio na senzala, recusavam-se a chorar a morte de Bernardo. Ele não merecia o castigo e todos concordavam que estava ele agora bem melhor. Havia apenas lamentos silenciosos.
E houve silêncio na igreja. Marília já tinha chorado por demais, os soldados já tinham dois suspeitos em mente e estavam quase concluindo suas investigações. E Bento chorava silenciosamente e não se sabia por quem mais. E a morte do escravo emudeceu as pessoas.
Só não havia silêncio no riacho que passa por detrás da cozinha. A água por entre as pedras fazia o burburinho de paz e calma. Ele continuaria ali, sendo a música de quem trabalha naquela cozinha. Francisca passou direto pelas mesas e foi para trás da senzala. Era ainda jovem, e muito bonita. Estava na cozinha por indicação de Ana, sua irmã um ano mais nova, que a protegia de uma eventual fúria de Marília. Ninguém sabia, mas Francisca era cobiçada pelo coronel. Havia jurado a si mesmo que faria amor com ela. Respeitosa da memória de sua mãe, escrava religiosa, havia prometido nunca se envolver com gente da casa grande. Sabia que era perigoso para as filhas.
O silêncio só foi quebrado pelos gritos de um menino que apontava para o rio. O corpo de Francisca sangrava entre as pedras, o facão que havia tirado a vida do coronel provocou o terceiro sepultamento naquele dia, por um profundo remorso, por um medo de ser violentada, por um medo que lhe tirava o sono, sob o sol do verão, naquele macabro cenário onde se vê uma igreja ao alto do morro, com ar sinistro.
***
__ Dona Rosa, dona Rosa – disse eu já, mão à boca, surpreso – então está explicado porque este lugar vive no abandono! E essa história, dona Rosa, está registrado em algum livro?
¬¬__ Não meu filho, ninguém nunca escreveu nada. Logo depois, dizem que sinhá Marília enlouqueceu, Bento foi embora e não voltou nunca mais. Libertou os escravos e deixou a fazenda nas mãos dos parentes.
__ Mas, os parentes até hoje nunca se interessaram em restaurar? Ou registrar a história?
__ Não sei, assim me contaram.