gritando por ben

Eu cheguei e tirei as roupas. Liguei alguma coisa na rádio e deitei. Estou morando nesse quarto há quarenta dias. É um quarto com cozinha e banheiro. É tudo que eu preciso enquanto não quiser enriquecer. Enriquecer não está nos planos, mas criei uma relação especial com a comida e com a bebida.

Durante esses quarenta dias, em somente cinco deles não ouvi os gritos da minha vizinha de baixo. Ela acorda quase toda madrugada e grita por alguém.

– BEEEEN! BEEEN! BEEEEEEN!

Suponho que seja algum macho deixado para trás.

Por mais que se assemelhe, aqui não é um hospício nem um sanatório, muito menos há uma placa de HOSPITAL na portaria.

Quando cheguei e fui escolher um quarto, o que tinha em mente era: um quarto que não fosse no primeiro nem no segundo andar. Eu queria um lugar alto. E o motivo era justamente me afastar desse comportamento viciante. Em todo prédio há um resquício de loucura em algum apartamento. Aqui foi encontrado no terceiro andar.

– BEEEEEN! BEEEEN! OH, BEEEEN, FAZ FRIO, BEEEEN!

Eu me levanto e passo um café. A gritaria dura sempre uns bons quinze minutos, então ela volta a dormir. Mas eu continuo acordado e termino de tomar meu café e fico deitado na cama até a luz do sol brilhar na janela. Não consegui encontrar um quarto onde não houvesse incidência de sol pela manhã. É bom, de certa forma, porque o sol da manhã não é tão quente quanto o da tarde. Isso não faz diferença alguma, visto que é uma cidade fria e tem comida abundante – o que faz aumentar minha aflição.

Da minha janela do quarto andar, tenho vista direta para os outros quartos dos outros blocos. São quartos padronizados. Pensei que fosse encontrar alguma cena engraçada, mas em quarenta dias nada aconteceu. Minto, pude ver uma garota que sempre usa as mesmas calças quando está em casa. Ela usa as mesmas calças por duas semanas. Usaria por duas vidas, se pudesse.

Hilda tem aparecido bastante. Ela gostou dos meus textos e começou a dormir aqui há algumas semanas. Durmo mal, desde então, porque não confio em quem diz gostar das minhas coisas. Mas ela cheira bem e disse que se sentia leve por estar com alguém que não falasse demais. Eu não falo demais, mas penso demais; e pensar demais me afasta de Hilda. Eu até gostaria de falar mais, mas ela curte mais que eu.

Hilda mora no quinto andar do bloco paralelo ao meu. Tem uma criação de papagaios e periquitos. Todo o piso e paredes estão cobertos de merda branca e seca. Ela diz que não adianta limpar.

– Vai estar tudo da mesma maneira quando você voltar – diz.

Não imponho nenhuma organização.

Fui com ela à rua ontem e descemos até o mercado. Compramos dois sacos de uma ração específica para papagaios e um saco para os periquitos. Às quatro da tarde eles começam a cantar, gritar. Ela fica da janela me observando enquanto escrevo. Hilda acha que se trata dela.

Cinthia esteve aqui várias vezes, mas nunca se atreveu a pedir um pernoite. Trazia uma caixa de seis cervejas e uma garrafa de vodca. Ela sabia que eu não gostava de vodca, mas trazia sempre a mais cara.

– Você precisa aumentar sua rede de interações alcoólicas – ela diz. – Cerveja te engorda, whisky te deixa com mau hálito.

– E o vinho?

– Dor de cabeça.

Eu estava começando a comprar mais vinhos, dos baratos, que venham em garrafas de um litro e meio. Mas Cinthia era problemática com minhas dores de cabeça.

Ela vem até meu computador e seleciona as músicas que quer ouvir. Deixo a cortina entreaberta, pouca luz entra, tiro as roupas e puxo um cigarro. Depois de três horas ela se manda.

– Até amanhã? – ela diz.

– Amanhã não posso – respondo. Tenho que escrever.

– Você não escreveu hoje?

– Sim.

– Então qual é o problema?

– Não consigo escrever quando você tá aqui.

Ela fecha a porta e leva o que sobrou da vodca. Me enfio debaixo da coberta e fico esperando “BEEEEN! BEEEEEN!”

François é o intercambista que divide apartamento com Cinthia. É meu único amigo. Tem um sotaque engraçado, mas fala com clareza e compreende tudo que digo – nem tudo que escrevo. Ele tentou escrever uns poemas. Não se acostumou o padrão das teclas do meu computador. Mas vê-lo tentando formar uma frase já era bastante poético.

– Falar é muito mais fácil que escrever – ele diz. – Veja esses acentos e cedilhas! Não percebo isso enquanto falo, mas escrever é um absurdo!

– Sua língua também tem disso.

Acho que ele era somente preguiçoso.

– Acho que isso é preguiça, cara.

Agora ele dita e eu escrevo os poemas. Todos eles levam “François F. F” na assinatura. Isso é gratificante por não ser o meu

nome. Os poemas que ele escreve – dita – são canalhas e fedorentos. François não sabe estruturar um pensamento. Quando você lê uns dois ou três, acha legal. Mas não tente ler sua coletânea

“A França dividindo um quarto gordo”.

Sara cursa psicologia e tem a tendência de achar que já é formada. Aparece aqui toda terça feira e me pede para sentar no sofá. Batizou de “O Divã Furado”. Há apenas dois furos nele. Há diversas manchas de cigarro. Faria mais sentido chama-lo de O

Divã Queimado, mas ela achou que “O Divã Furado” agregaria uma personalidade ao objeto. É um sofá onde se senta ou dorme ou sobe em cima, nada mais.

Sara é a única pessoa que reclamou dos gritos da minha vizinha de baixo. Enquanto ela examinava meu sono, ouvia os primeiros gritos e me acordava.

– Eu acordo com isso toda noite – eu digo –, não preciso que você aja como um despertador.

– Mas é estranho – ela diz. – Não há eco.

– Como assim?

– Ouça! Não há eco! Era para o som rebater nessas paredes dos blocos e causar eco.

– Sério? Você faz Psicologia!

– Isso é física básica! Ouça!

Então ela estica os braços e bate uma palma. Sim, há um eco provocado pela palma. Agora ela começa a elevar o tom de voz. Novamente, eco.

– Não sei o tá acontecendo, Sara. Talvez a voz dela esteja vindo pelo corredor, e não pela janela.

– Tenho certeza de que está vindo pela janela.

Quando o som encerra, eu vou passar o café e Sara dorme. São onze e meia da noite e ouço a voz do porteiro. Já fizeram a troca de turno. Preciso falar com ele.

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– Eu acho que minha vizinha de baixo tá atrapalhando mais gente – eu disse. – Não é possível que seja só eu!

– Qual é o número do seu apartamento? – respondeu.

– Cinquenta e dois. Bloco D.

É um sujeito gordo e compacto. Me olhou com uma cara de deboche e abriu uma caixa de sapatos. Dentro, havia um molho de chaves e envelopes com os números dos apartamentos e nomes dos inquilinos.

Olhei para ele. Fingia procurar alguma coisa naquela caixa. Eu estava exausto.

“Ben”, dizia seu crachá.

Filho da puta.

Ben levantou o olhar e mordeu o canto da boca, enquanto eu tremia de frio. Olhei para minha janela. Estava tudo apagado, exceto a tela do computador.

Bem retornou a examinar a caixa e disse:

– Não há ninguém morando naquele apartamento.

Voltei ao quarto querendo ter comprado mais vinho.