Vitrais - " Vencendo o Jogo do Preconceito"

1995 - Joan Pete Ballock

As ultimas semanas em Bloemfontein tem sido rentáveis para o povo local. A exposição de rosas no King's Park reúne pessoas de todas a partes do país que se deslocam pra apreciar a nova estação. Chegara enfim a primavera africana. Ao redor do parque centenas de barracas vendiam comidas e bebidas regionais pra saciar os visitantes. A grande festa que outrora era destinada a população branca , hoje já desponta como um encontro de raças e dialetos. Ao lado da estatua do Príncipe Gaulês, criador do parque Eduardo VIII , quatro varas de bambu apoiam uma lona preta ao alto. Embaixo dela um pequeno fogareiro aquece o potijie que cozinha pedaços de carne que serão acompanhadas pelo tradicional mieliepap. Sob o calor tórrido das 13 horas ,e vestida em trajes tribais , Bakka Baduwa cozinha e serve os famintos clientes que se aglomeram em volta da barraca. Aos 77 anos ela não nega um sorriso farto e palavras doces a quem quer que se aproxime. Começa por volta de 7 horas e termina por volta das 20, quando os portões do parque se fecham. Quando não há festa na cidade ela se posta em frente ao quartel general da cidade, onde soldados do exercito a procuram no final do dia pra comer bebericando a forte kissangua .Geralmente isso acaba em muitos risos, mentiras e musica. Sempre em posse de seu violão, o soldado Joan Pete Balock , um branco loiro de olhos azuis dá o ritmo aos companheiros, tocando Beatles e Rolling Stones. Ao final , é ele quem ajuda Baduwa a levar as tralhas pra casa , que fica em um gheto próximo a rodovia.

Joan Pete alimenta o sonho de um dia ser musico desde sua infância. Começou a gostar de violão quando ganhou um, já usado, de seu velho tio Thomas. Aprendeu a tocar comprando revistas baratas que continham cifras , normalmente musicas americanas e inglesas. Contudo,a falta de estudo e as poucas oportunidades de emprego no período pós apartheit o levaram, assim como milhares de jovens a optar pelo Exercito Sul Africano. Nascido e criado em Cape Town , foi levado a Bloemfontein numa tropa destinada a proteção de prédios governamentais do novo governo, agora liderado por Nelson Mandela. No inicio de 1995, recém-empossado presidente, o Pai da Pátria ainda sofria com retaliações em cantos do país por algumas ações controversas, como má distribuição de renda , corrupção crescente e intervenções militares em alguns setores. Por isso o recrutamento em massa de jovens, para que pudessem ter algo em que se ocupar e ao mesmo tempo servir de escudo protetor ao sistema.

Joan foi criado na chamada elite branca. A educação dada por seu pai, um bancário que trabalhava em um estatal, não deixava margem de duvidas que negros eram apenas subservientes. O jovem, apesar de não concordar, nunca discutia as ações e pensamentos de seu pai. Com o tempo , aprendeu a relevar os comentários racistas que ouvia em casa. Quando foi para o exercito, seu pai, ao vê-lo fardado com as cores de seu país ficou orgulhoso do filho, porém ao perceber que na mesma tropa haviam muitos negros se recusou a aceitar tal humilhação. Desde então pouco se vêem ou se falam, e quando acontece, se limitam a falar sobre Rugbi, o único assunto de interesse mútuo. O sonho de ser musico era secreto, já que seria facilmente abortado pela rígida educação que lhe foi imposta. Agora já era tarde pra tentar, pensava...

A vida de Joan era pacata. Todos o dias saia do trabalho, passava na barraca e ia diretamente para casa. Ele morava com mais cinco soldados numa casa com dois quartos. Dividiam entre eles as despesas da casa e o aluguel. Joan dormia no quarto com Mike Dohan, da mesma tropa que ele. Mike era um negro, alegre e namorador. Todas as noites contava as historias que se desenrolaram durante o dia, envolvendo flertes e convites. Joan, ficava ponteando seu violão enquanto ouvia ,quase que desatentamente, as peripécias do companheiro. A contrario de Mike, era caseiro e tranquilo em relação à mulheres. Tinha um pequeno flerte com uma moça do posto de saúde do bairro, chegaram a sair algumas vezes, mas a coisa ainda estava morna. Assim ficavam até apagarem as luzes e dormirem no beliche, onde Mike fazia questão de dormir na parte superior.

Na noite de 2 de maio de 1995, ao chegar em casa, Joan depara com uma carta , selada e carimbada pelo Exercito Sul Africano. Ansioso por ver do que se tratava, foi logo abrindo o envelope antes mesmo de trocar a roupa. Nunca havia antes recebido nenhuma correspondência oficial do comando.

O conteúdo da carta era pequeno e direto. Ele seria deslocado para a cidade de Johannesburg , no dia 5 , pra trabalhar no maior evento esportivo que já houvera no pais.

A Copa do Mundo de Rugby Union , o mais importante evento mundial desse esporte seria realizado no país. Ele trabalharia lá no período de 25 de maio à 24 de junho. Antes haveria o treinamento especifico para o evento.

Rugby era uma das paixões de Pete. O esporte era o mais popular do país, uma verdadeira febre nacional, porem , não tão forte para enfrentar as grandes seleções de nações do mundo. Ele ficara muito feliz e ansioso por participar de tal evento.

A noite anterior a partida para Johannesburg , claro, foi feita a despedida na barraca de Bakka. Muita bebida, muita musica, e muita alegria. Boa parte da tropa fora selecionada. A noite foi reservada para festas e despedidas. Um beijo na face de Bakka selou a promessa de volta logo após a copa. Um sorriso, dessa vez entristecido, apareceu no rosto da velha africana.

Chegada a data do embarque, um avião da Força Aérea Sul Africana pousou em Bloemfontein para levar a tropa até a capital para iniciar os teinamentos. Em poucas horas desembarcariam.

Joan e sua tropa foram recepcionados por caminhões do exercito que os levaram até um acampamento militar, num terreno , cercado de alambrados ,onde antes era uma favela que foi removida pelo governo para não aparecer nas imagens que iriam ao mundo todo. Um palanque de ferro foi montado para a apresentação formal ao general que os iria comandar. Um homem branco, alto e forte, com a voz e o tom determinado , falou aos soldados. Outros a sua volta, sobre o palanque só aplaudiam. Todos eram brancos, como ele. Joan desviou um pouco o olhar pela tropa, e só nessa hora avistou negros. Em sua mente, como num filme, veio a imagem do pai. Brancos ordenando e negros cumprindo. Por um instante achou que nada havia mudado na sua Africa. Voltando seus olhos ao palanque, viu , por traz do alambrado, um negro, de calça bege, simples e uma camisa de tecido leve que ficava por fora das calças. E o olhar vidrou e depois , sorriu de admiração. O presidente Mandela estava lá...observando

Dia 25 de maio desse ano começava então, finalmente, a maior festa nacional já vista nos últimos tempos. Joan, já postado no estadio, ouvia o hino nacional e o discurso de Mandela, dando boas vindas aos competidores de todas as nações ali participantes. Redes de rádios e Tvs transmitiam para todo o pais. Um clima de festa tomava conta da Africa. Mandela então vê a grande chance de usar essa festa para a união de negros e brancos.

Ao assistir a um jogo dos "Springboks", equipe de Rugby da África do Sul, meses atraz , Mandela percebeu que os negros no estádio torciam contra a equipe local, por causa do preconceito. O presidente refletiu e chegou a conclusão que enquanto estava na prisão, fazia o mesmo. Sabendo que dali um tempo a África do Sul sediaria a Copa do Mundo de Rugby 1995 , o então presidente decide intervir: junta forças políticas para apoiar os "Springboks", o representante do país no Mundial. Após o fortalecimento fora do campo, o Excelentíssimo conversou com o capitão da equipe, François Pienaar. Durante o papo, Mandela explicou que uma vitória Sul Africana na Copa do Mundo mudaria a faceta do país. E essa data chegou finalmente.

Joan estava orgulhoso de seu trabalho. Sua tropa trabalhou intensamente durante todo o evento, correu por cidades, viu o olhar de alegria e esperança de seu povo. Como uma competição esportiva poderia unir um povo que há seculos estavam desunidos ao extremo? A mão forte e apaziguadora de Mandela se fazia presente.

Durante a competição, os "Springboks" superaram todas as expectativas e se classificaram para a decisão contra a Nova Zelândia os "All Blacks", time mais bem-sucedido de rugby na época. Apoiado por uma torcida grande de brancos e negros, Pienaar chama a responsabilidade, como um bom capitão, e motiva sua equipe.

O pais todo agora é uma enorme festa. Chegaram a final do torneio, algo inimaginável ate então. A fé e a coragem dos jogadores e de um povo todo unido propiciaram esse momento sublime.

Joan e mais 11 componentes de sua tropa, negros e brancos, são escolhidos como guardas de honra da taça na grande final. Eles conduzirão ao estadio e levarão ao centro do gramado para entregar ao Presidente, pra que ele entregue ao time vencedor. Uma sensação nunca antes sentida por Joan até então. Eles conduzem a taça, desde o cômite organizador atá a beira do gramado, onde ficará exposta até o final do jogo. Ao lado esquerdo dela, Joan fica imovel , como ficam todos os companheiros da guarda. Ele só desvia os olhos duas vezes. Uma na entrada de Mandela, na tribuna de honra que ficava atras do local onde estava. Outra em direção ao lado direito da arquibancada, a procura de seu pai, que lhe indicara que ali estaria.

Os "Springboks" venceram faltando alguns minutos para acabar a partida, em um "drop kick" do meia Joel Stransky, com um resultado de 15-12 causando uma explosão de alegria em todo o país

Mandela e Pienaar se encontraram no centro campo para celebrar a vitória.Mandela entrega a taça que é erguida por Pienaar, como se estivesse dando posse dela ao público lá presente. O presidente agradece o capitão pelo desempenho, liderança e colaboração. Já Pienaar dizendo, com voz embargada, que pela primeira vez havia visto em seu país pessoas que viram juntas, independente de cor e crença se abraçarem. “Isso foi algo alem de maravilhoso”

Joan Pete Ballock, muito perto de tudo isso, ouviu não só essas palavras, como também cantos e aplausos de 62 mil pessoas que lotaram o estadio. Acompanhando o Presidente e o Capitão em sua volta olímpica, ele finalmente avista seu pai. Lá estava ele, ao lado de brancos e negros, entoando o hino. As cenas vistas por ele naquele dia serão eternas. Ele foi um dos escolhidos por Deus para ser testemunha de uma improvável e inesperada vitoria, tanto dentro de campo como fora, dando inicio assim ao inimaginável inicio do fim desigualdade racial em sua pátria.

PoetaDan
Enviado por PoetaDan em 10/03/2015
Reeditado em 17/03/2015
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