Vitrais - "Uma estrela sob escombros"

Didier Luc – 2010

A rua Ville Une não existia mais. Luc encostou seu velho taxi o mais próximo que se lembrava de onde era sua pequena casa. Devia estar há duzentos metros dela. Atônito e desorientado ele vagava entre escombros , gemidos e muita gente cavando. Eram funcionários da defesa civil e voluntários moradores que tentavam ajudar, soubera depois. A paisagem, antes cheia de casebres, agora era de pilhas de madeiras, tijolos e telhas quebradas. Ele ainda tenta absorver tudo , quando abaixo de seus pés ouve um grito abafado. Sem saber exatamente o que estava fazendo começa a cavar com as mãos e gritar por socorro. Duas outras pessoas chegam e de repente eles avistam uma pequena mão. Se apressam a tirar coisas de cima e em instantes aparece o corpo ainda com vida de uma pequena menina, que aparentava perto de 3 anos de idade. Eles a tiram dali, com o auxilio de um funcionário que a encaminha a uma das dezenas de ambulâncias que estavam por lá. Luc olha suas mãos sangrando, olha pro céu e ao invés de chorar arregaça as mangas da camisa branca de motorista. Seus próximos 5 dias seriam de trabalho incessável , sem comida e com pouca água.

Didier Luc, 26 anos, vinha com seu táxi de uma viagem aos redores de Port au Prince quando sentiu um leve deslocamento em seu carro.Achou que era problema mecanico e seguiu a viagem,estranhando apenas o fato de a radio ter saido do ar. Ao chegar na cidade percebeu a movimentação cada vez mais estranha , gente correndo, policia por todo lado, ambulâncias. Homens e mulheres choravam, desesperados.

Era 12 de janeiro de 2010 e o Haiti sofria um dos maiores terremotos da historia da humanidade. Port au Prince, a capital e cidade mais populosa do pais foi atingida em cheio sendo o epicentro da tragedia que matou 240 mil pessoas. Luc tinha poucos parentes, a maioria distantes, foi criado por tios já falecidos em uma grave epidemia de colera nos anos 90. Vivia sozinho num casebre e vivia de poucas corridas com seu velho táxi corcel 1978. Era pobre, sozinho, mas conformado com a situação. Nascera num dos países mais pobres do mundo, onde não há nenhum respeito aos direitos humanos, mas sua situação, como a de milhares de haitianos, não o permitia sonhar com nada mais do que a vida que vivia.

Durante esses longos e quase infindáveis 5 dias ele viu corpos dilacerados, centenas de mortos, o sofrimento desesperado de parentes que se salvaram a procura de seus entes queridos. Presenciou pessoas em estado de choque, vagando pelos escombros sem rumo. Nada do que tinham sobrou. Alimentos começaram a faltar, agua e esgotos a ceu aberto e bichos começaram a transmitir doenças que só aumentariam o numero de vitimas.

No quarto dia após a tragedia, e ainda trabalhando sob um calor de 40 graus, começou a sentir calafrios e febre alta. Não parou nem por isso, mas quando se deu por si, já estava em um acampamento militar, em uma tenda medica, onde foi internado após ser achado desmaiado, e com delírios. O quadro era de leptospirose. Não havia medicamento suficiente pra todos e agora só dependiam de doações internacionais da Cruz Azul, que custavam a chegar. Após espera de alguns dias, finalmente, chegam medicamentos vindo num avião da força aérea brasileira. Esses dias de inferno iriam mudar a via de Didier Luc. O Haiti não mudaria...

Depois de dias de recuperação, Luc finalmente deixa o acampamento medico. Centenas de pessoas estavam lá, por falta de vagas em hospitais. Ainda sem estar totalmente recuperado ele sai com um encaminhamento para habitar um dos vários abrigos montados ao redor da cidade para abrigar quem perdeu suas casas. Centenas de colchões, que foram doados pela ONU estavam espalhados por todos os lugares na velha igreja batista da cidade. Nos fundos do terreno, uma ilha de tijolos apoiavam um fogareiro improvisado, onde pessoas preparavam a refeição para todos. Mulheres descascavam batatas e mandiocas que cozinhavam para alimentar, principalmente as crianças. Muitos deles ainda doentes ou lesionados, passavam o dai a contar suas historias sobre a tragedia. Historias de pessoas desaparecidas, ou achadas sem vida eram rotina por lá. Luc, assim como todos, estava totalmente perdido e desorientado. Não tinha sua casa, seu emprego como taxista simplesmente deixou de existir, ja´que não havia condições nem de trafegar pela cidade. Assim ele começou a trabalhar no acampamento. Ajudava na limpeza, na arrumação, tambem na distribuição de alimentos para aqueles que não podiam se locomover até o local onde era servida. Começou após alguns dias a acompanhar as enfermeiras e enfermeiros que visitavam o local para ministrarem remédios, fazer curativos e pequenos trabalhos aos acidentados do local. Com isso, foi aprendendo rapidamente a fazer algumas coisas, e ganhou a confiança dos profissionais pra fazer alguns trabalhos sozinho, na ausência deles. Todos os dias ele ia até o local onde um dia foi sua casa. Nada ainda havia mudado, a não ser o cheiro que exalava por lá e por toda a cidade. Corpos ainda eram achados quase que seguidamente e na maioria destroçados. Não havia, nessa altura, mais esperança de sobreviventes. Estávamos a essa altura a um mês do ocorrido.

Numa tarde de fevereiro, chega ao acampamento, mais uma leva de pessoas, que por já estarem recuperadas dos ferimentos, mas por não terem pra onde ir, iriam juntar se a eles.

Como sempre, ele e outras pessoas do local se dispuseram a ajudar a acomodar as pessoas. Eram mais ou menos 50 e não havia colchões e lugar suficiente para todos. Ele então cede seu colchão a um senhor , já idoso, cuja perna esquerda foi amputada pelos ferimentos. Algumas crianças foram acomodadas em colchões maiores, de casal, onde dormiam de 5 a seis delas.

A noite chegou, e como sempre a pouca comida foi distribuída prioritariamente as crianças e idosos. Não era a primeira vez que ficava sem. Antes de se recolher em algum lugar, ele passa pelos estreitos corredores entre os colchões, com sua pequena maleta onde haviam alguns remédios e curativos checando se alguém precisava de algo. Ele então vai para o lado externo da igreja. A noite era quente, e estrelada. Ele se senta no chão e recosta em uma parede do muro externo, de frente pra porta sempre aberta da igreja, onde pretende cochilar ou mesmo dormir enquanto pensa que a vida dele não tem mais nenhum sentido. De lá ele avista, na escuridão, uma pequena sombra de uma criança andando em direção a escadaria do altar. Ele vai ao encontro , mas a menina percebendo a aproximação corre e cai , rolando abaixo. Ele chega ao local, ouve um gemido, e vê uma pequena mão estendida em direção a ele. Sem saber ainda que não era a primeira vez que aquelas pequenas mãos lhe pediam socorro , ele estende o braço, segura na pequena mão e puxa a criança pra si, abraçando a apertado ao peito para acalma la. Algumas luzes se acendem e ele olha o rosto da menina e se arrepia. Paloma La Luce, como se chamaria depois, era o novo sentido de sua vida.

Agora, com a criança nos braços, Luc lembra bem do rosto da menina. Era ela a mesma criança que salvara nos escombros. Havia algum motivo para ela estar ali, sã e salva, no mesmo lugar que ele. Ele então decide que, enquanto ela estiver por ali e não for procurada pelos pais, ele assumira a vida daquela pequena menina. Ela dormiria hoje em seu colo, coberta com a camisa que ele tirou para aninha-la. Amanhã ele iria dar um jeito de melhorar as condições.

No dia seguinte pela manhã ele sai atras de ajuda. Com a menina e seu colo, passa por vários lugares, explica a situação, pede roupas, cobertas, leite, porem a carência no lugar era tão grande que pouco conseguiu. O que era servido no acampamento não era suficiente forte para manter uma criança saudável, alem disso, havia faltas diárias de coisas absolutamente necessárias, que dependiam de doações internacionais, que demoravam a chegar, isso quando não eram desviadas ou mesmo saqueadas por pessoas normais, mas que pela dura realidade se tornaram quase vândalos.

No terceiro dia de sua peregrinação por lugares, ele avista , já na saida da cidade, o que depois descobriria ser um convento. Lá ele é recebido por uma madre de origem Nicaraguense, de nome Maria , que o confortaria e tentaria ajudar-lhe. Apesar de centenas de crianças estarem por ali, parecia o local um pouco melhor do que o que estavam. Ela contudo pondera que ali ela só poderá acolher a criança, e por apenas um determinado tempo, já que sua missão ali era por tempo determinado. Ele agradece, diz que vai deixar a menina, mas pede permissão para visitá-la diariamente, no que é prontamente atendido. Ele então inicia a volta ao abrigo. Apesar dos poucos dias juntos, um pedaço dele ficou la naquela casa. A menina, cujo nome e idade não sabia, tinha cativado o coração de Luc. Ele chega ao abrigo ao anoitecer, come uma pequena refeição, e vai ao muro se recostar novamente. A noite seria longa dessa vez.

No dia seguinte, assim como nos próximos, sua rotina seria essa. Ir até o convento pela manhã, que ficava há umas duas horas a pé, e voltar no final do dia ao acampamento. Passava os dias sem comer, pois lá não havia suficiente pra visitantes. Normalmente algumas das irmãs lhe cedia um pedaço de pão, mas era só isso. Ele ficava por ali, ajudando em uma coisa e outra, em pequenos serviços e observando sua pequena, agora já batizada informalmente pelas irmãs como Paloma La Luce.

Durante sua estadia por lá, teria visto algumas rachaduras nas paredes e tetos, causadas tambem pelo tremor. Mas com a falta de materiais, não podia fazer muita coisa.

Após 15 dias de rotina, Luc chega ao local, e percebe um grande movimento de pessoas e carros oficiais. Ele se apressa, e ao chegar é informado por Irmã Maria, que o prédio deverá ser desocupado, por ordem da defesa civil, que detectou perigo de desabamento. As crianças serão removidas pelo governo para uma cidade distante 840 quilometros dali, para um acampamento militar, onde serão estabelecidas. As irmãs, por falta do que fazer, voltariam a suas patrias ou seguiriam pra outras missões pelo mundo. Assustado, ele corre em direção a Paloma, e a retira da fila que já se formava. Ao ser interrogado pelo policial sobre sua atitude ele diz que é pai da menina, e que não tinha os documentos pra provar pois perdera tudo. Depois de uma pequena reunião entre os agentes, ele é liberado com a menina. Luc, que durante toda sua vida viveu só, sem irmãos, e que sonhara um dia ter muitos filhos, agora é pai. O pai de Paloma La Luce Luc. Um dia o mundo a conhecerá !

PoetaDan
Enviado por PoetaDan em 10/03/2015
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