O jantar
Planejou meticulosamente o dia. Lavou e poliu o carro, separou sua melhor roupa, baixou músicas para compor a trilha sonora da noite, borrifou perfume no corpo como quem se besunta de filtro solar antes de cruzar o deserto do Saara e reservou o melhor restaurante da cidade.
Era aniversário da namorada e não poupou esforços para impressioná-la.
O restaurante, especializado em frutos do mar, era um dos melhores e mais caros da cidade. Ambiente intimista, meia luz, jazz de elevador e figurões como vizinhos de mesa.
Um prato de frutos do mar inesquecível harmonizado com o melhor vinho da adega. Um banquete memorável. De sobremesa, um insinuante roçar de pernas debaixo da mesa de mogno maciço.
Na saída do restaurante foi abordado por um daqueles insistentes vendedores ambulantes de flores, mas rejeitou todas as investidas. Recusou todas as ofertas, mas se sentiu muito mal com isso. Acabara de dizimar uma pequena fortuna naquele oceânico ritual gastronômico e se negara a comprar flores de um pobre coitado, o que talvez lhe custasse menos que a gorjeta do manobrista.
Foi o começo do fim daquela noite. Acabou dominado por uma sensação estranha de culpa e sentiu que alguma coisa muito ruim estava na iminência de acontecer, uma espécie de castigo divino pelo seu comportamento insensível e sua falta de gratidão pela boa vida que levava.
No percurso de volta pra casa, bateu o carro. Apagou.
Acordou ainda um pouco confuso com o excesso de luz que lhe saturava a visão. Foi recebido por um homem alto, de longas barbas vestido apenas com um manto branco que lhe caía por cima dos ombros largos.
- Deus?
- Quem me dera… Sou apenas estagiário…
- Vixe, terminei mal… Mas então, porque estou aqui? Foi um castigo por causa das flores ?
- Não, foi por causa do vinho.
- O que tinha de errado com o vinho?
- Nada, aliás, nada mesmo, aquele vinho é perfeito: equilibrado, taninos acentuados, encorpado e com notas frutadas que remetem a tons de nozes, amêndoas e frutos secos.
- Então não foi pelo vinho?
- Foi pelo vinho sim, não sabia que álcool e direção não combinam?
- Ah tá, pensei que fosse castigo.
- Aqui ninguém castiga ninguém. Nunca ouviu falar em livre arbítrio?
- Puxa, e eu pensando que era por causa do vendedor de flores…
- Você podia mesmo ter sido mais gentil com ele, mas aquelas flores eram de um mau gosto imperdoável, não combinariam com um jantar tão chique, além disso ele é muito insistente e chato mesmo. Não é de espantar que suas duas primeiras mulheres não o aguentaram. Se eu fosse castigá-lo naquela noite seria por deslizes ainda maiores…
- Quais?
- Não abriu a porta do carro pra namorada, elegeu pagode e sertanejo universitário como trilha sonora e pra piorar ainda ficou olhando para os seios da recepcionista do restaurante …
- Mas eram enormes aqueles peitos, você reparou?
- Xiiii…. Desse jeito você vai ter que falar é com o estagiário do sub solo, lá onde o ar condicionado não funciona, se bem me entende…
- Valei-me Deus, nem pensar. Aliás, não tem um jeitinho de reconsiderar meu destino?
- Improvável. Os fatos consumados são quase sempre irrevogáveis.
- “Quase sempre”? Então tem alguma brechinha…
- Até tem, mas teria que recorrer da sentença e não é comigo, sou apenas um estagiário…
- É, pelo jeito estagiário é igual em todo lugar.
- Sim, nem Deus ajuda.
- O que são aquele monte de televisões ali?
- É a sala de controle, onde eu trabalho.
- Então você fica espiando a vida de todo mundo?
- Espiando não, que bisbilhotice é pecado. Fico monitorando as atividades terrestres para facilitar a triagem.
- Posso dar uma espiadinha na Carol? Preciso saber se ela está bem.
- Venha.
- Pelo jeito ela está bem até demais. Por que que ela está esmurrando meu corpo desse jeito?
- Ela pegou seu celular para ligar para o resgate e acabou dando uma espiada no seu WhatsApp, no álbum de fotos…
- Putz! Ferrou, acho que vou enfartar.
- Se serve de consolo, espírito não enfarta. Agora se eu fosse você ficava por aqui mesmo. A terra se tornou um lugar perigoso demais para você frequentar…