Mais fundo e mais próximo do céu

Um dia um velho pescador se sentou em seu humilde toco de madeira antiga, já atacado por cupins e que ali estava desde que se lembrava, na beira daquela majestosa lagoa donde, por quarenta anos, tirou seu sustento. A barba já grisalha mostrava que anos de esforço e de fé já tinham se passado naquelas margens que hoje pareciam mais serenas que de costume.

A tarde era quente, de um calor profundamente aconchegante, combinada com o tom laranja dos raios de sol que começavam a se afastar no horizonte. As águas estavam suavemente paradas e vez ou outra eram perturbadas pela brisa que soprava do leste criando pequenos balanços que desfiguravam a imagem perfeita da mata fria que guardava aquele local.

Estava sozinho porém sentia cada partícula da energia da vida pela qual estava envolto. Nunca fora um homem religioso. Seu deus era a floresta, a lagoa, a chuva, os peixes e todos os seres invisíveis que contribuíam para a construção do seu simples universo natural.

Tudo que construira viera daquelas serenas águas límpidas e escuras, e fora bondosamente dado pela natureza que a zelava.

Posicionou o pequeno toco para ainda mais próximo da água. A canção que vinha do fundo daquele intenso reflexo era um convite. "Mais fundo e mais próximo do céu". Era assim que sentia as notas daquela melodia que misturava medo e uma sublime curiosidade pelo que o espelho escondia.

Por algum tempo não se deu conta de si.

Estava submerso, sentia um leve sabor de morte, mas sabia que estava mais vivo do que qualquer ser da terra. "Submerja e não subestime" - ouvia enquanto se deixava cair e se perder no vão daquele devaneio. Se via envolvido pelas águas frias, mas sentia calor. "Calor na morte? Mas sempre disseram ser um frio dessabor". A voz voltara " Submerja e não subestime, seu céu está no fundo de seu mar".

Ele entendia com perfeição aquelas palavras, e cada célula de seu corpo estava viva. Veio a força e a determinação; o pescador acolheu aquela intrigante escuridão e a fez parte de si. Sentia os peixes que ali o observavam e as plantas; sentia o balançar das ondas o movimento dos animais que matavam sua sede nas margens.

Seu corpo era a água e ele era aquele lugar. Era o anzol, a isca e o sorriso da conquista do alimento. Era o sol e o luar. Era toda a vida do ecossistema complexo e sutilmente simples. Percebeu ser deus. Estava em tudo e tudo era ele e fazia formar seu ser.

O canto de um pássaro ecoou mais forte na mata e o despertou. Ele conhecia todos os ruídos da mata, mas não identificou qual pássaro o chamara de volta para seu cansado corpo de pescador.

Seu reflexo desapareceu. A noite estava nublada e a pouca luz nao permitia mais que o espelho falasse. "Submerja e não subestime". Levantou-se, acendeu seu tradicional cigarro de palha, feito com fumo de rolo, e caminhou de volta para a casa, guardando o sorriso de alguém que conheceu a si mesmo.