A Bacia de Pentel

- Oh, menino! Já tomou seu banho? Esqueceu que hoje você tem um almoço na Igreja? Vá logo tomar seu banho!

- Pera aí! Já to indo! O negócio aqui na TV já tá acabando! – Replicou e suspirou tédio.

Apelou D. Aveia de Janeiro ao seu filho, que retrucou, Pentel, Pentel de Janeiro. O menino, de dez anos, apenas, teria um almoço em sua paróquia e esse era um tanto imperdível. A fé do pré-jovem nunca fora escolhida por ele e sim imposta por sua mãe Aveia, que muito religiosa, temia que sua prole seguisse maus caminhos na estrada da vida. Pentel não nascera para ser religioso e devido ao fato, quando lhe aparecia uma chance de ausência à missa, ele faltava, ora por extensão do sono, atrasado devido às longas horas em frente à TV, ora por simulações de cansaço ou dor. Seu pai não o pressionava tanto, por mais que fosse membro do corpo secretariado da igreja, e deixava seu filho por si só. Tessar, como fora batizado, e próprio pai de Pentel, acreditava que o moleque já possuía responsabilidade e era capaz de responder por seus feitos, mesmo com os, pós quatro meses feitos, dez anos de vivência.

Pentel terminou a TV, tomou seu banho e começou a vestir-se: camisa de mangas vermelha, uma calça jeans, que usava também em dias de escola, e um par de tênis preto com cadarços e solas brancos. D. Aveia e Sr. Tessar estavam o esperando no carro.

Ao chegar à igreja, Pentel viu e acenou para alguns de seus coleguinhas de catequese. Ele não queria que crianças, como a fofoqueira Pilô, por exemplo, o visse. O rapazinho temia que a jovenzinha cochichasse algo a respeito de si, tanto à sua mãe quanto ao padre, sobre seu comportamento nos dias de culto catequético. Outro desafeto de Pentel era Aurélio, garoto que paquerava a paixão infantil de nosso personagem, a comum Ana Lúcia Rosa, magrinha e bem criança, fisicamente, ainda; mas que nunca, mesmo cheia de brincadeiras e traços ingênuos, teve olhos para Pentel. Pobre Pentel. Aurélio, por ser maior que a maioria dos meninos de idades próximas acabava chamando mais atenção das garotinhas, especialmente, a já falada Pilô, que abusando da criatividade, criava falsas falácias para afastar as rivais e tê-lo para si; e Ana Lúcia Rosa, que ora falava com ele ora não. Ela, como fora dito, era uma menina comum e muito envergonhada; não conhecia, ainda, os mistérios do encanto.

Antes do almoço ficar totalmente pronto, Pentel saiu da igreja e começou a brincar do lado de fora, atiçando sua fome. Lá fora, além dele, estava um jovem de treze anos, chamado Califórnio, filho de bons pais, e Tatit, rapazinho de doze anos que fora apelidado por esse nome por ter traços indianos ou árabes. Passados vinte minutos, no lado de dentro da Igreja as crianças começavam a aprontar seus pratos enquanto Pentel tornava ausente. O Padre Dos Santos, já há três anos membro do clérigo local, aproxima-se da mesa das crianças, abençoa os alimentos servidos à mesa e brinca, dizendo:

- Quem não comer vai se ver comigo, hein! – E imediatamente as crianças partem para cima dos pratos. Pentel sentiu um cheiro forte e percebeu que era comida. A comida da igreja que ele perdia. Despediu-se de Califórnio e Tatit e correu para o refeitório roncando de fome.

Aproximou-se ao lado de Hugh, um gordinho, cabelo em formato de cuia, loirinho, que o disse, com tom um pouco assustado:

- Pentel, o padre disse que quem não comer vai se ver com ele. Eu fiquei assustado.

- Para de graça, Hugh! Olhe para você! Todo gordinho acha que não vai comer tudo? Não quero nem saber! Eu vou comer é tudo! Tô morrendo de fome.

Quando olhou à mesa, Pentel, além de não ver mais pratos, não via mais cadeiras próximas. Ele pegou uma bacia de alumínio e sem dó começou a enchê-la. Nela, ele põe muito feijão branco e muito arroz, desrespeitando o pecado capital da gula. Após totalmente preenchida, Pentel sentou-se ao chão mesmo com a bacia entre suas pernas, que abertas a cercavam e começou a comer. As crianças estranharam a atitude do menino. Pentel achou sua comida um pouco aguada e muito fina; dirigiu-se à cozinha e pegou um saco de farofa. Inconsequente, derramou por toda a bacia e voltou a comer sua comida, agora mais consistente.

Passados dez minutos, Pentel começou a ter dificuldades para comer e viu a dimensão que botara em sua bacia. Era muita comida. Por mais que tivesse dado inúmeras colheradas, o nível de comida não abaixava. Dava-lhe a impressão que a comida subia cada vez mais. Olhou para os lados, desconfiado e arrependido. Pensou no que fazer, mas não sabia o quê. Temeu o padre Dos Santos, que ao ameaçar as crianças despertou o medo do gordinho Hugh. Ele tentou avisar a Pentel, mas havia sido rejeitado. Agora Pentel que estava com medo. No início havia desdenhado as falas de Hugh: “Pentel, o padre disse que quem não comer vai se ver com ele. Eu fiquei assustado”. Mas agora ele temia a ação do paroquial. Temeu sua mãe, que sempre o alertava sobre maus comportamentos na mesa. Não foi a toa que há dois meses, Pentel derramara suco nos panos da mesa de sua avó. Ele estava caçoando dos familiares no almoço com seu primo Pepe e quando levantou-se para pôr seu suco, errou o copo, pois olhava para outro lugar. O vexame foi estrondoso e o rapaz tomou uma bronca intensa de D. Aveia, sua mãe. Pentel temeu seu pai. Lembrou-se das palmadas que recebia um pouco mais jovem quando desobedecia-o e fingia estudar no silêncio do quarto.

A situação do garoto estava muito complicada. Sua comida lá estava, no mesmo lugar, cheia. Pentel não se mexeu e passou todo esse tempo refletindo, parado e sentado ao chão.

Pentel não viu outra alternativa a não ser: fugir de Dos Santos, D. Aveia e Sr. Tessar. Mas como fugir? A bacia de comida do menino era enorme. Todas as crianças haviam esvaziado o prato, enquanto o jovem, ao chão sentado, deixava seu alimento “intacto”, mesmo tendo dado várias abocanhadas e sucumbido sua fome. Se Pentel saísse da igreja, as pessoas veriam que ele não havia comido o montado. Se Pentel entregasse a comida, iria passar uma enorme vergonha por desperdiçá-la. Se Pentel fizesse algo com aquela bacia cheia, ele poderia “se ver com o padre Dos Santos”. Esse era o seu maior medo. Padre Dos Santos.

O jeito foi fugir, sem deixar vestígios. Apesar de mal pensada, Pentel levou sua bacia para o banheiro. Tia Jurubeba, senhorinha que auxiliava as crianças à mesa, percebeu o feito do menino. Olhou com vistas tortas e desconfiou. Imediatamente pensou em avisar a Dos Santos, mas foi distraída por uma outra criança que caiu no pátio e ralou o joelho. Tia Jurubeba esqueceu-se de Pentel e foi ajudar.

No banheiro, Pentel suava frio. Estava desesperado e muito nervoso. A cabeça não articulava os planos. Fechou os olhos e rezou.

- Me ajude, meu Deus.

Pentel saiu do banheiro, deixando sua bacia dentro de um boxe, sobre o vaso sanitário. Saiu da igreja, não olhou para ninguém, não despediu-se... Se quer a reverencia ao altar dera. Saiu como um morto-vivo, apenas olhando para frente e querendo sumir. Virou a primeira esquina, a fim de que ninguém pudesse vê-lo mais. Assim andando, chegou próximo a uma pracinha com um belo campo de futebol verdemente gramadinho com as áreas danificadas. Sentou-se em um dos bancos de concreto que lá tinham, abaixou a cabeça e coçou a nuca com a mão direita. A bacia estava na igreja e ele tinha que dar um jeito naquela artimanha. Novamente olhou para o céu e pediu um milagre.

- Me ajude, meu Deus. – Fechou os olhos fortes, ficou estonteado e mentalizou a bacia. Usou do seu poder e tentou trazê-la para si, sem que ninguém da igreja percebesse. Como se fosse um sonho. Como se fosse magia. Apertou as pálpebras, forçou a mente e conseguiu. A sua frente estava a bacia de comida, agora no seu colo; ainda cheia. Ação foi puramente mágica. Puramente surreal. Um sonho. Pentel agradeceu a Deus pelo milagre. No entanto, o menino ainda estava muito próximo da igreja, muito próximo de Dos Santos, muito próximo de seus pais. Deu mais duas, sofridas e angustiantes, colheradas; segurou a bacia com as duas mãos, firmes; tornou os olhos fechados novamente, atordoou-se e imaginou um local deserto, sem preocupação; sem o padre e sem sua família, para que pudesse pensar no que fazer com a comida. Ao abrir os olhos, Pentel obteve mais um sucesso. Desta vez estava em um bairro, até então desconhecido, com aspecto tenebroso, mas com ninguém. Como fora desejado. Ninguém.

Um pouco mais aliviado, o menino poderia pensar no que fazer com todo aquele pratão.

Na igreja, D. Aveia deu falta de seu filho. Avisou a Sr. Tessar. O casal não sabia o paradeiro de Pentel, muito menos sabia desse poder ou desse sonho que o menino fazia. Era algo impressionante. Inacreditável. Uma verdadeira ilusão. D. Aveia começou a ficar muito nervosa. As lágrimas enchiam-na os olhos sofredores. Sr. Tessar a abraçava e olhava para frente, pensando em nada; apenas no semblante de Pentel. O casal procurou Dos Santos. O padre estava cercado de crianças que perguntavam onde estava Pentel. Ao ver os pais do desaparecido, o padre ofereceu abraços e consolos.

- Nosso filho, padre. Ele desapareceu de um jeito muito estranho. Eu quero meu filho agora! – Esbravejou estericamente D. Aveia, agora completamente desequilibrada. Os joelhos foram para o chão, e pelos sovacos fora amparada por Sr. Tessar, para que a esposa não esbofetasse-se no chão de maneira mais estrondosa. As crianças arregalaram os olhos com a ação da mãe e esposa.

- Minha irmã, D. Aveia; meu irmão Sr. Tessar. Vamos acreditar no criador e deixar que ele faça o seu milagre. Só o Todo Poderoso poderá trazer seu filho de volta. Tenha fé que ele voltará já já. – Com essas palavras, Dos Santos procurou confortar o casal.

Toda a igreja abraçou a causa Pentel, mas não saíram da igreja. Tia Jurubeba avisou que havia visto o jovenzinho indo ao banheiro com sua bacia de comida. Sr. Tessar ouviu os ditos da senhorinha e foi procurar seu filho. O homem nada achou. A ilusão de Pentel fora tão perfeita que nem rastros de sua passagem deixara no banheiro. Ninguém sabia dos sonhos que Pentel fazia. O pai, desapontado e cabisbaixo, chegou ao pátio, onde todos estavam, com a feição fechada e balançando a cabeça negativamente. D. Aveia já sofria bastante com o desaparecimento de sua criança. Assim, todas as pessoas permaneceram na casa e esperaram o feito divino, proposto e profetizado pelo clérigo Dos Santos.

No bairro escuro, Pentel assustou-se. Com a bacia as mãos, o menino caminhava; agora perdido. Quis voltar, fechou os olhos, mas não conseguiu imaginar ninguém. Nem sua mãe, nem seu pai, nem, mesmo, Dos Santos. A sensação era de que algo muito ruim aconteceria com o rapazinho. Seus olhos arregalaram-se, sua pressão aumentou e seu ritmo cardíaco deu uma intensificada. Arrependeu-se de tudo: ter posto muita comida, não ter comido, não ter ficado no campo, ter desejado um lugar deserto. Ele estava em uma situação muito difícil. Andando para ver a “espera de um milagre”, Pentel ouviu uma voz gemendo. Prendeu a respiração, assustou-se e, saindo de um cobertor de papelão, um mendigo barbudo estendeu a mão esquerda e pediu sua comida. O jovem não respondeu nem acionou-se. Ficou parado.

- Por favor... Me ajude, eu preciso comer. O cheiro está muito bom e você tem muito, pelo que estou vendo aí. – Novamente pediu o mendigo. As mãos de Pentel tremiam muito e o menino permaneceu estático. O sem-teto enfureceu-se com a apatia do menino e se levantou num golpe muito rápido. Pentel viu todo aquele movimento parado, com o coração disparado e boquiaberto. Apenas sentiu o forte cheiro daquele homem assustador.

- Seu moleque! Me dá isso aqui! – O mendigo arrebatou a bacia de Pentel numa única tacada. – Saia já daqui! Aqui num é lugar de criança não! Cadê sua mãe? Seu pai? Fala alguma coisa! O gato comeu sua língua? – e quieto, Pentel não respondia. O mendigo, já muito nervoso, pegou Pentel pela gola da camisa, aproximou seu rosto ao do jovem, com a outra mão: apertou-lhe as bochechas e lentamente falou, num tom de voz grave e tremido:

- Some! – Empurrou e derrubou Pentel no chão. Ele caiu de bunda no chão e com as mãozinhas por trás. A sua comida também caiu, mas o mendigo, como um animal faminto, não importou-se com a farofada no chão. Com sujas mãos, começou a comer da comida de Pentel. O menino, dessa vez, resolveu correr, por fim, desesperado e sem a bacia.

Chorando muito, Pentel não sabia para onde ir. Cada esquina daquele vilarejo era igual ao outro. O vilarejo transformara-se numa grande e uniforme esfera. Por mais que Pentel corresse, sairia sempre no mesmo lugar, ma mesma esquina, na mesma fronte de portão, na mesma entrada de puteiro. Cada passo do menino era uma lágrima. Pentel rendeu-se ao cansaço, ajoelhou-se, ergueu as duas mãos, fechou os olhinhos e clamou devagar:

- Meu-Deus. Por-favor-me-ajude.

Ao abrir os olhos, Pentel estava em uma casa, bem simples. Uma salinha de estar bem antiguinha, com móveis de madeira e uma cadeira de balança movimentando-se sozinha. Ele estranhou e se sentiu um pouco apavorado, temeroso e surpreso, novamente. Quando saiu daquela casinha, deu de cara com a igreja. A emoção desabrochou do menino. Olhou para a imensidão do céu, fez o sinal da cruz e agradeceu. Estava apenas a uma avenida de seus familiares. Esta avenida, um pouco movimentada, pelo horário próximo às cinco da tarde. Antes de atravessar arriscou um grito:

- Mãe! Pai! Estou aqui! Cheguei!

D. Aveia e Sr. Tessar, atualmente, desamparados e com terços às mãos ouviram seu filho.

- É ele! É ele! – Exclamou D. Aveia. – O casal saiu de dentro do pátio da igreja e foi ver seu filho, que aparecera. Quando D. Aveia viu Pentel, não aguentou. Derramou-se em lágrimas e ajoelhou. Sr. Tessar também se emocionou. Todas pessoas estavam saindo da igreja para ver o jovenzinho que havia desaparecido.

- Meu filho! Meu filho! Você voltou! Você voltou.

Do outro lado, Pentel derramou sua primeira lágrima de emoção na vida e não conteve-se ao ver sua mãe. Esqueceu-se do mundo e saiu atravessando a rua...

- Pentel! – Gritou Sr. Tessar desesperado. Pentel olhou para a direita, assustou-se com a forte buzina e parou. Apenas viu o capô de uma caminhonete na sua frente.

Na verdade, Pentel não viu a caminhonete... Não viu...

. . .

- Socorro! Ah! O que foi isso mãe?

- Levanta, meu filho. Você está todo suado. Teve algum tipo de pesadelo essa noite? Ah, isso não importa. Já são dez e meia da amanhã. Esqueceu que hoje você tem um almoço na igreja? Vá logo tomar seu banho e vamos sair já já. Seu pai e eu já estamos te esperando.

O menino percebeu que aquela história toda era apenas um pesadelo.

Gabriel sCardoso
Enviado por Gabriel sCardoso em 28/11/2014
Código do texto: T5051568
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.