464-HISTÓRIA DE BEATRIZ -Abertura de "Senhora das Coroas"

Mamãe lavando roupa pra fora. Me recordo bem, tentando ajudá-la estendendo a roupa na grama alta, para clarear e secar. E em seguida, nós duas, eu com uns quatro ou cinco anos, levando as trouxas de roupa passada, para as patroas do centro da cidade. Isto, mamãe fazia para nosso sustento. Muitas vezes mamãe era chamada às pressas, sai de casa afobada, me recomendado Toma conta direitinho, Beatriz, não saia de casa, mamãe já volta. Só alguns anos mais tarde é que entendia que as saídas, de dia ou de noite, era a fim de atender mulheres que estavam esperando nenê. Foi quando mamãe me levou com ela, me explicando Você vai me ajudar, a dona Carmem vive sozinha, o marido morreu, não tem ninguém da família. Fiquei assustada com o eu vi, entre uma e outra panela de água quente que levava pro quarto. Dona Carmem gritando, as toalhas e lençóis manchados de sangue, o primeiro choro do nenê e depois a paz enchendo o quarto, como uma benção para a mãe e a criança.

Obrigado, Dona Tereza. Deus lhe pague. Olha que gracinha....Então, eram agradecimentos que não acabavam mais. Depois desta primeira vez, passei a ir junto com mamãe sempre que saia para atender um chamado.

Mas havia outros chamados, aos quais atendia com igual presteza: era para preparar mortos para o enterro. O pessoal falava que era serviço de lava-defunto, que mamãe exercia com igual carinho dedicado às mulheres que davam a luz. Também nessas ocasiões, passei a acompanhar mamãe e, enquanto ela preparava o morto (coisa que nunca ví), me distraia trançando flores e galhos verde em pequenas coroas que, depois, colocava aos pés do defunto. Assim, inicio e fim de vida sempre me foram familiares, convivi com nascer e morrer sem estranheza e, por que não dizer, com muito amor.

Logo que saí do grupo escolar, tive de trabalhar, para ajudar mamãe. Faxineira no hospital foi meu primeiro serviço. Era miúda, magra, mas esperta demais, um azougue. Como já tinha aprendido com mamãe a atender nos partos, as enfermeiras me chamavam para ajuda-las a fazer pequenos serviços na enfermaria. Não passou muito tempo, e fui promovida. Um dia, cheguei em casa gritando Mamãe, mamãe, fui promovida! Agora sou ajudante de enfermeira!

Era muito benquista no hospital. Esforçava-me ao máximo, não tinha hora nem dia. Quando precisavam de uma enfermeira extra, lá estava eu. As enfermeiras e os médicos sempre me trataram bem. Se morria algum paciente sob meus cuidados, eu ajudava a levá-lo ao necrotério, e, quando podia, comparecia ao velório e acompanhava o enterro.

Sempre ajudando minha mãe, passei a cuidar dela quando a idade avançou. Casamento, pra mim, nem pensar. Quando ela morreu, fiquei só porém jamais solitária. Procurava ajudar as pessoas nas horas e dias de folga do hospital. E assim decorreu minha vida até o dia em que, por força da lei, fui compulsoriamente aposentada. A gente sente, dona Beatriz, mas a senhora já atingiu a idade máxima.Foi curto e grosso o diretor do hospital, que, estranhamente, era um bancário aposentado.

Não me dei por acabada. Muito pelo contrário! Não tive um dia sequer de descanso. Tratei logo de fazer qualquer coisa, e por isso abri a flora. Era tudo muito simples naqueles tempos, a minha flora nem nome tinha. Apesar de ser a única da cidade, passou a ser conhecida como flora da dona Beatriz. Aceitei.

Tive a intuição de que o movimento maior seria a venda de flores para os velórios, por isso minha flora ficava na pracinha defronte ao cemitério. Estava certa. As encomendas de coroas me davam muito trabalho, mas com a prática passei a atender todos os pedidos.

Enquanto entrelaçava flores e galhinhos, arames e fitas, ia pensando no falecido, na família e coisas afins. Conhecia muita gente, estava com mais de sessenta anos, e a cidade era muito tradicional, as pessoas não se mudavam com freqüência. Quando acontecia de não conhecer o morto, indagava das pessoas Quem era ela (ou ele)? Como morrera? Qual a idade? Logo verifiquei a importância do morto pela quantidade de coroas encomendadas. E minha cabeça não parava de recordar (se o morto era conhecido) ou imaginar (se desconhecido) a vida do homenageado.

É claro que diversos, poucos enterros eram feitos sem a devida homenagem das coroas. Mesmo daqueles enterros simples, ou apressados, eu procurava saber de quem se tratava. Com o passar do tempo, sabia da vida de todos os mortos enterrados no cemitério, e minha cabeça ficou cheia de histórias, causos e lendas daqueles que habitavam as campas, túmulos e mausoléus.

Sabia mais dos mortos do que dos vivos.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 19 de novembro de 2007 –

Conto 464 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/10/2014
Reeditado em 25/10/2014
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