OS SETE SENTIDOS

Ah! O mar! Como eu gosto do mar! Tanto que pedi, implorei ao meu grande amigo que fosse passar uns dias em meu apartamento, em Peruíbe, bucólica cidadezinha encravada nos contrafortes das montanhas, portal de entrada para as reservas Juréia-Itatins, onde os moradores do lugar travaram e ainda travam batalhas homéricas para manter preservado o último remanescente da mata atlântica ainda intacta, terra da eterna juventude, onde a energia cósmica toca os picos das montanhas... O lugar era ideal para o meu amigo descansar, já que as picuinhas do cotidiano estavam levando-o à loucura... falava em suicídio... Achei que podia salva-lo mandando-o para lá.

Uma semana depois, entre lágrimas, abraçando-me calorosamente, felicidade estampada na cara, contou-me esta inusitada história, que mudou radicalmente a sua vi-da...

¬“Ali estava eu, em direção à orla da praia, parafusando meus pensamentos, arquitetando a melhor maneira de dar cabo da minha vida. Nada valia a pena, tudo era sofrimento, tudo estava desmoronando e eu estava sem forças para reagir. O pessimismo reinava absoluto. Andando a esmo, remoendo meus problemas, nem percebia a belezura do lugar, muito menos o que estava acontecendo ao meu redor.

A trombada foi inevitável. O choque não foi violento, mas suficiente para desequilibrar o senhor de bengalinha, que também passeava naquela ensolarada manhã de outono, no calçadão da praia. Segurei seu braço, evitando que caísse; percebi que era cego.

— Oh! Desculpe-me — iniciei a conversa desajeitadamente, mal-estar de culpa sacudindo meu corpo — Eu aqui imaginando ser só meu todos os problemas do mundo! Nada comparável em ser cego! Deve ser muito triste não enxergar nada! Perdoe-me, por favor!

Bamboleou no rosto daquele homem um sorriso indulgente, divertido, maroto. O semblante iluminado era de um homem sereno e feliz. Com voz compassada e suave, dicção impecável de homem letrado, respondeu-me:

— Não meu amigo! Não é triste ser cego. As dificuldades por estar cego são superadas pela melhor qualidade dos outros sentidos. Eles evoluíram muito depois que fiquei cego, acima de 50%. Tentarei explicar melhor, venha! Vamos sentar no banco da praça, pois já percebi que o senhor está muito tenso e precisa relaxar!

Esparramou-se satisfeito no banco de concreto, aguardando que eu também me sentasse. Sorriu, sorriso discreto... Começou a falar:

—Passado o trauma e a revolta inicial por ter ficado cego, percebi que ninguém estava nem aí com o meu problema e me tratavam como estorvo. Fui à luta e descobri um novo mundo. Percebi que a visão escraviza a mente na superficialidade do que se vê num átimo. Mudando a cena a cada piscar de olhos não deixa o pensamento aprofundar-se no âmago das idéias, ficando assim comprometido o seu entendimento. Um mundo novo estava diante de mim e precisava ser conquistado. Comecei um treinamento mental e logo senti que todos os outros sentidos aumentaram suas sensibilidades. Fez breve pausa, esperando minha atenção...

— A minha audição funciona como um detector de mentiras, percebo com clareza as variantes na entonação da voz e entendo o significado das entrelinhas, aí enxergo a sinceridade do coração.

— Meu tato, quando toco em alguém, percebe na transpiração e no calor, vibrações de tensão, de tranqüilidade, de preocupação ou de indiferença. Tenho uma visão exata do estado de espírito da pessoa. Enxergo a dor, a alegria e a hipocrisia das pessoas.

— Meu olfato capta as perturbações hormonais que mudam o odor de cada um. Enxergo com clareza pessoas com desequilíbrios emocionais, os perturbados por problemas.

Olhou-me com seu olhar vago, senti que ele detectara minhas intenções, observou o meu amigo. E o senhor continuou, calmo e sereno...

— Meu paladar descobriu novos sabores, só identificados quando foi eliminado da minha mente o contexto das aparências. A embalagem não me engana mais com seus falsos chamados.

– Hoje, cientificamente comprovado, os quatro sentidos aumentaram em 50% sua eficiência, portanto, somando tudo já não teria cinco, mas seis sentidos. E foi emendando sem dar chance para qualquer interrupção:

— Os cegos, com o passar do tempo, ativam um outro sentido, inerente a todos os humanos, mas, na maior parte deles permanece inativo a vida inteira: É a percepção extra-sensorial. É um valioso instrumento que está ao alcance de todos para descobrir que a vida não pode ser alicerçada nas coisas efêmeras, na conquista do supérfluo. As dificuldades da vida existem justamente para que possamos acelerar esse processo de conhecimento. Veja só — abriu-se em sonora gargalhada — tenho sete sentidos!

Encabulado, despedi-me, e vendo aquele olhar vagueando pelo infinito, entendi, por um segundo, a verdadeira essência do ser humano. Percebi naquele momento a pequenez dos meus problemas. Agigantou-se dentro de mim a auto-estima, a vontade de remover obstáculos, o prazer da conquista.

Chapinhando as marolas pela praia deserta, caminhando em direção ao morro, observando os desajeitados siris correndo em direção às suas tocas n’areia ante o eminente perigo que eu supostamente representava, acompanhando com olhar o gracioso vôo das gaivotas, divagava...As coisas mais belas da vida só se enxergam com os olhos do coração.”

E o meu amigo encontrou a sua felicidade.

OSWALDO DE SOUZA
Enviado por OSWALDO DE SOUZA em 25/08/2014
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