Jennifer - Pais - Primeiro ato
Cinco horas da manhã.
Sem sono, sem vontade de fazer nada.
Basicamente essa virara sua rotina.
Não havia mais ninguém que tivesse o poder de lhe dizer quando deveria dormir, quando deveria ir à escola ou quando deveria comer. Fazia tudo quando queria, quando sentia vontade ou necessidade.
Já não sabia mais quanto tempo passava em casa ou fora dela. Já não andava mais com relógio no pulso, aquele que sua avó lhe deu no último aniversário, nem com o celular. Não precisava de relógio porque não fazia sentido saber a hora se não se tem horas para chegar em qualquer lugar ou fazer qualquer coisa. E não levava o celular porque já não queria mais ninguém no seu pé.
Seus problemas em casa aumentavam cada vez mais. Seu pai reclamando porque ela vivia fora de casa – “provavelmente com algum macho fazendo sabe-se lá o quê”, dizia ele – e sua mãe preocupada porque havia encontrado seringas usadas em sua bolsa. Jennifer já não sabia mais como explicar as seringas, muito menos o porquê de ficar tanto tempo fora de casa.
Era uma quinta-feira quando, por algum milagre, seus pais disseram que viajariam. Os três, numa bela viagem em família, num belo hotel cinco estrelas, com vista para o mar. Seria perfeito. Perfeito para ficarem mais tempo juntos, para se conhecerem melhor, dizia sua mãe. Comeriam pizza todos os dias. Sorvete com calda de chocolate – lembra, Jenni? Você gostava muito quando era criança – a tarde inteira, sombra num quiosque qualquer na praia. “Parece-me legal, mãe”, disse, quando sua mãe lhe falou da viagem.
É claro que Jennifer não queria ir. Em primeiro lugar, calor. Segundo, pessoas. Terceiro, ficar com seus pais era a última coisa que gostaria de fazer. Mas tudo bem. Suportaria essa. Dessa vez.
No decorrer daquela semana até a próxima sexta-feira, sua mãe só falava da viagem. Estava empolgada, feliz, muito feliz. Seu pai parecia dez anos mais jovem. Jennifer estava entediada com todo esse assunto. Sua mãe lhe falou que essa praia, em especial, tinha história e que, quando chegassem lá, Jennifer saberia de toda a história.
Então chegou a sexta-feira. Na noite anterior havia feito sua mala, se é que se pode chamar uma mochila com uma calça jeans e duas camisetas de mala. Partiram para a praia na sexta de manhã, cedo demais para o gosto de Jennifer. “Temos de aproveitar esse feriado, não haverá mais nenhum tão longo”, disse sua mãe. “É, mãe, concordo”, disse Jennifer, concordando com o “longo” na frase de sua mãe.
Chegaram à praia quase ao anoitecer. Foram para o hotel, deixaram suas malas e foram caminhar. Caminharam ao longo de toda a calçada, na beira da praia. Ok, ok, ok. Jennifer conseguiu caminhar, apesar do cansaço da viagem. Comeram pizza, como o prometido. Jennifer simplesmente não queria comer. Não sentia como se precisasse. Porém, como boa filha, fez o papel de gulosa e comeu algumas fatias.
Chegou ao quarto e trancou-se nele. Abriu sua bolsa. Dali tirou uma pequena caixa de madeira. Abriu-a e tirou os itens básicos pra que ela não morresse, por assim dizer, ironicamente. Seringa, colher, isqueiro. Pegou uma caixinha menor ainda, forrada com veludo – e com plástico filme, um improviso de Jennifer – e, dentro dela, viu aquele pozinho branco solto, feliz, sorrindo para ela. Um pequeno frasco com suco de limão.
Então preparou tudo – sete gotas de suco de limão e um grama do pó brilhante na colher. Dissolveu o pó no suco, elevando a temperatura com o isqueiro. Amarrou um cadarço no braço. Encontrou a veia. Sugou o líquido com a seringa e injetou rapidamente na veia, já saltando. Largou a seringa no chão e jogou a cabeça para trás, fechando os olhos. “A sensação sempre muda, é exatamente como torturar – a sensação sempre se renova, sempre é cada vez mais gostoso”, pensou. Dez minutos depois já se recuperara do baque. Limpou sua bagunça, guardou tudo no seu devido lugar, verificando se a caixa menor estava bem lacrada. Teria de controlar suas doses ali, sabia disso.
Deitou-se em sua cama e ficou pensando.
Já fazia um tempo que não torturava ninguém. Sentia-se bem e mal com isso. Depois do episódio na garagem, simplesmente não havia encontrado mais ninguém que lhe valesse seu tempo e dedicação. Já não conseguia mais encontrar alguém que lhe desse vontade de tentar coisas novas. Então decidiu que iria trabalhar em novos prazeres. Sexo descontroladamente, com pessoas que não conhecia, em lugares sujos e becos escuros, quase sempre sem proteção alguma – sim, Jennifer fez exames e, sim, ela tinha uma porção de doenças, o que não afetava em nada sua vida – e na maioria das vezes, torturando – claro, sem chegar ao ponto psicopata, costumava dizer que era “sadomasoquista” – todas as pessoas com quem transava. Sim, pessoas. Porque não eram só homens, ou só mulheres. Eram os dois. Travestis também. Os travestis inspiravam nojo em Jennifer e ela adorava passar cada doença que tinha para eles. Ou elas, que se foda.
E depois descobriu as drogas, ironicamente, no grupo de jovens de “sua” igreja. Porque Jennifer não ia à igreja quase nunca, sequer acreditava ou desacreditava naquela besteira toda, preferia se manter alheia a tudo aquilo, mas sua mãe insistia para socializar com os bons moços e moças da igreja. Era sábado, lembrava-se muito bem.
Um garoto do grupo de jovens chamou-a para um baseado. Ela foi. Fumaram, ela tossiu, ele riu da cara dela. Ele também morreu, por ter rido dela. Outra história, definitivamente sem importância nenhuma neste momento. Depois daquele dia, Jennifer entregou-se ao mundo e decidiu experimentar tudo que podia. Foi da maconha para a cocaína, depois para o LSD e as famosas balinhas sorridentes e daí para o crack. Odiou crack do primeiro ao último segundo. Sempre acompanhada de uma boa garrafa de vinho – ou duas – e alguma vodca barata. E então conheceu Vitor, que lhe apresentou a heroína. Quando viu pela primeira vez aquele pó brilhante, ficou com medo. De alguma forma, a heroína tornara-se moda. Todos usavam. Todos que usavam morriam – direta ou indiretamente, em consequência da droga.
No dia em que lhe foi apresentada, cheirou. Gostou da sensação. Ficou alguns meses apenas cheirando aquilo, curtindo cada momento da brisa. Depois de algum tempo, cheirar não era o suficiente, ou tinha que dobrar a dose. Seu septo estava fodido de todas as formas possíveis. A mistura da heroína com a cocaína não deixava dúvidas de que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde.
Então continuou com a cocaína e passou a injetar a heroína. Fez um curso integral com Vitor sobre a aplicação. Nunca no mesmo furo. Suco de limão era a melhor coisa do universo para dissolver. Cadarços são melhores que cintos. Sempre seringas usadas no máximo duas vezes – e sempre por ela mesma, nada de dividir com outras pessoas. Prestava atenção em Vitor como uma boa aluna – como nunca foi na escola – e tomou-o como guia. Saíam juntos, pareciam um casal, mas ele era gay. Picavam-se juntos. Meses depois, Vitor morreu. Jennifer não foi ao seu enterro. Ele era o mais próximo de “amigo” que Jennifer jamais tivera. Pode-se dizer que Jennifer sofreu sua morte em silêncio profundo, com duas seringas. “Uma dose para mim, uma para você, baby”, dizia quando se picava duplamente. Foi ao seu túmulo duas ou três vezes, abriu-o e jogou lá dentro de seu caixão, com o corpo já em decomposição, uma seringa, uma colher, um cadarço, um isqueiro amarelo – era sua cor favorita – e um saquinho de felicidade. Sentia-se uma boa amiga quando fazia essas coisas por ele. Várias vezes ficou inconsciente na picada dupla, mas por ela tudo bem. Não tinha nada a perder, nada que a prendesse.
E desde que se descobriu dependente da heroína, dois meses depois da morte de Vitor, não matou mais ninguém, apesar de continuar torturando ou, melhor dizendo, transando com algum (ou alguma) masoquista.
Sentia falta da sensação, era uma sensação muito boa mesmo. Devia voltar aos velhos tempos, pensava. E se, ali na praia, encontrasse alguém que preenchesse os pré-requisitos para receber sua atenção? Seria legal. Ali ninguém desconfiaria de nada. Era cheia de turistas, gente que não conhecia nada e ninguém. Jennifer também não conhecia. Mas isso não era problema nenhum, tendo em vista que qualquer lugar serviria. Trabalharia na ideia.
- Princesa? – chamou seu pai.
“Princesa...”
- Oi, fala – abrindo a porta com um sorriso de mentira.
- Então, amanhã acordaremos cedo. Quer ir dar uma caminhada, conhecer um pouco o lugar?
- Que horas?
- Oito e meia.
- Pode ser. Vai ter que lutar para me tirar da cama, mas vou, sim.
- Ok, princesa. Boa noite.
- Boa noite, pai.
Fechou a porta. Quando se deitou na cama, ouviu novas batidas na porta. “Mas que saco…”
- Esqueci de dizer… – seu pai, constrangido.
- Esqueceu de dizer o quê?
- Eu te amo. Desculpa se te ofendi alguma vez com minhas ideias idiotas.
- Tudo bem, pai… Eu te amo também.
- Ok. Agora sim. Boa noite. – e sorriu.
- Boa noite. – sorriu, dessa vez de verdade.
Deitou na cama, novamente. Agora dormiria. Amanhã acordaria cedo e encontraria alguém. Já havia se decidido. Ficaria mais três dias ali, contando a partir de amanhã. Tudo bem…
Acordou, com sua mãe trazendo uma xícara de café – preto, sem açúcar – na cama.
- Bom dia, flor do dia!!! – disse sua mãe, animada.
- Bom dia, mãe… – falou, meio grogue.
- Dormiu bem?
- Como um urso.
- Acho que isso é bom – e passou a xícara de café para Jennifer – né?
- É, sim, mãe… – deu um gole no café. Parecia chá.
- Eu tenho uma história para te contar antes de sairmos para caminhar.
- Ok… Estou ouvindo…
- Lembra que eu disse que essa praia tem história?
- Lembro…
- Então. A história é a seguinte – há exatos vinte e sete anos eu estava numa viagem, com meus colegas da faculdade. Seu pai não era um desses colegas, claro… Ele veio para cá, também, com sua então namorada. Nós nos conhecemos dentro de um restaurante, onde ele esbarrou em mim e derramou todo o seu café em cima de mim, bem na blusa. Dá pra acreditar? – e riu.
- Sério? E aí? – Jennifer não estava interessada, mas era melhor não deixar transparecer.
- Sério! – falou, ainda rindo – Mas então, continuando. Ele olhou para mim e pediu-me desculpas. Aceitei suas desculpas. Acontece, né? Depois desse dia, pensava em seu pai todos os dias. Ele diz que também pensava em mim. Nos encontramos várias vezes, nesse mesmo restaurante. Estávamos hospedados no mesmo hotel, por uma incrível coincidência. Eu era bobinha, ainda. Esperava encontrá-lo em todos os lugares que ia. E encontrei-o, de fato, em alguns. – “meu Deus, será que essa merda não vai acabar nunca?”, pensava Jennifer, assentindo. – De qualquer forma… Fomos nos encontrando por acaso, até que, numa noite particularmente linda, fui até a beira do mar e fiquei lá, parada, sentindo o vento no meu rosto e a água morna nos meus pés. Seu pai foi até lá, também. Ele me viu, conversamos trivialidades, depois o assunto mudou… Disse-me que brigara com a namorada, que não aguentava mais o ciúme e as provocações. Eu disse que entendia, que era complicado mesmo, mas que tudo se ajeita. Ele riu e começamos a caminhar. Em algum momento, ele me beijou e quando vi, estávamos subindo para o hotel. Não vou entrar em detalhes, Jenni, mas você sabe o que aconteceu. Ele largou da namorada naquela mesma noite. Fomos embora dali, juntos. Namoramos, tudo sempre deu certo e, por fim, casamos. Dez anos depois daquele dia, tivemos você. Um presente do amado Deus. É por isso que estamos aqui. Você acha que ninguém lembra que depois de amanhã é seu aniversário? – perguntou, com os olhos brilhando.
- Que história linda, mãe. – tomou um gole do chafé – Não queria que lembrassem do meu aniversário. Estou ficando velha.
- Nós te amamos, queríamos lhe dar a chance de conhecer o lugar que originou toda a nossa história, a sua história. – disse, sorrindo amavelmente. Jennifer não parava de pensar no quanto queria arrancar aqueles dentes brilhantes de porcelana.
- É muito bom saber dessa história. Vou contá-la para os seus netos, um dia. – sorriu.
- Não… Você terá uma melhor. – “COM CERTEZA!”, pensou Jennifer – Mas tudo bem. Vamos?
- Vamos. Dá um tempinho para eu tomar um banho rápido e trocar de roupa?
- Tudo bem. Vinte minutos?
- Vinte e cinco. – odiava números pares.
- Tudo bem. Esperaremos lá embaixo.
- Ok, mãe.
Saiu e fechou a porta. Jennifer levantou-se da cama e foi correndo para o banheiro, vomitar. Não sabia se vomitava porque sentia-se enjoada pela história da mãe ou se era porque precisava de uma dose. Vomitou, e muito. Inclusive, achava estranho que dessa vez não havia nem uma única gota de sangue. Mas ok.
Sentou-se na cama e picou, dessa vez no pulso. Tomou uma ducha rápida, colocou a calça jeans e uma blusa preta e saiu. Encontrou-se com os pais no saguão. Seu pai bebia uma cerveja e sua mãe um chá gelado. Seu pai perguntou o que gostaria de beber. Ela respondeu “só uma dose”. Seus pais entreolharam-se e não viram problema em deixar Jennifer beber uma dose de uísque. O barman colocou a dose no copo e Jennifer virou, de uma vez só. “Obrigada”, murmurou. Pediu um café preto e sem açúcar para viagem.
Caminharam muito, muito mesmo. Não havia muito sol, o que agradou um pouco. Mas muitas pessoas. Jennifer olhava e imaginava-as todas nuas, numa enorme orgia. Ria sozinha. Seus pais riam da filha rindo sozinha, achando que estava bêbada. Pobres pais… Não sabem de nada. Nunca sabem.
Voltaram para o hotel. Jennifer foi ao quarto, deitou-se, colocou os fones de ouvido e dormiu. Acordou quando sua mãe a chamou para o almoço. Jennifer desceu, comeu alguma coisa, esperou os pais terminarem o almoço e voltaram juntos para seus quartos. Picou-se.
Saiu à noite, sozinha. “Agora é a hora. Hora de caçar”, falou para si mesma. Caminhou pela calçada, longe da praia. Andava tranquilamente, olhando com cuidado e atenção para todas as pessoas que passavam por ela. Encontrou possíveis vítimas, mas ninguém que fosse um exemplo de organização, ou que fosse excessivamente vaidosa, ou que tinha olhos vazios… Sempre alguma coisa estava errada com as pessoas que via na rua.
Foi neste momento que pensou em sua mãe e seu pai. Oras… Eles eram exemplos de organização, realmente chatos com isso. Sua mãe era vaidosa, com quase quarenta anos, já tinha rugas, mas as escondia perfeitamente. Seu pai gostava de roupas e sapatos caros, de executivo. Seus olhos – de ambos – eram vazios. Eles já estavam mortos, não estavam?
Os sinais de que alguém está morto são bem claros. Olhos vazios, costas curvadas, crenças – políticas, religiosas, etc. –, nostalgia. Tudo isso… Sinais. Sinais de que a pessoa já não tem mais vida nenhuma. Que o que chamava de vida morreu há muitos anos, quando aceitou, ou sujeitou-se, a ancorar a si mesmo em alguma coisa, algum lugar.
Seus pais já estavam mortos. Jennifer era filha única. Seus avós já morreram. Não tinha tios ou tias. Quem sentiria falta de seus pais? Ninguém, era a resposta. Voltou para o hotel.
Fez um caminho diferente, certamente mais comprido, mas genial. Encontrou ali um galpão. Uma área grande, abandonada. Cenário perfeito, lugar perfeito, ideia perfeita. Já tinha em mente como faria tudo para dar certo. Sentia-se doente, mas precisava fazer isso. Agora a vontade já era maior do que conseguia controlar.
Lembrou-se de que não havia trazido ferramenta alguma fora o soco inglês, o maçarico e o canivete. Teria de se virar com o que tem. Mas tudo bem. Ainda era cedo, poderia passar no mercado ali perto e comprar, pelo menos, cordas. E assim o fez. Caminhou pelos corredores, prestando atenção em cada item das prateleiras. Comprou duas cordas de um metro, pregos grossos e fita crepe na seção machista. Agulhas de costura e de tricô, linha preta fina e um novelo de lã na seção feminista. Na seção genérica, ou seja, o resto do mercado, comprou cervejas, cadarços novos, um terço folheado a prata e um pacote de batatinhas – estava com fome. Pagou tudo com o cartão de crédito do pai. Não se preocupou quando viu o valor da compra. Não teria que explicar nada para seu pai.
Foi para o hotel. Entrou em seu quarto e jogou as coisas em cima da cama. Já estava na fissura, precisava de mais um pico e depois dormiria pensando nos detalhes.