A MÁXIMA DE UM POUCO DE NÓS
Escrevo e a razão me cansa. Mal faz domingo no tempo da gente e a fadiga despista o encanto se há. Tali, pensei, ou lá. Há de estar em algum canto e não haverá se eu não encontrar, justifico. Fez festa para o colégio inteiro ontem, e o domingo acorda no goto, ainda que eu não tivesse bebido, ainda que a festa, pra mim, estivesse parada. Pareceu-me uma missa.
Daqui a pouco virá meu avô do quartinho dele, estenderá a toalha ao varal dos mamoeiros, servirá a si um copo de café e antes me perguntará da festa. Como explicar que aqui estou desde as duas?, pois se aqui estou desde as duas para fazer cara de que aqui um camarada festivo acabara de chegar! Depois vem o meu pai, beberá café, combinará afazer ou outro com o meu avô e a ter-se de conta que não está tão satisfeito com o cheiro da pós-barba, coçará o queixo a me perguntar: “e a festa”? Minha mãe, em seguida, a olhar compenetrada e reprovar a mesa posta, quererá saber se a festa foi boa. Mais tarde – e bem mais tarde – serei acordado por meu irmão que, à frente da insuportável noiva de cabelos vermelhos, dirá no tom que me toca o fígado: “pô, veio, pegou ninguém não?”.
A vida ou é vício ou é vírus. Mas não, não pode. Eu não preciso estar contente e ser sucesso o tempo inteiro, principalmente quando esperam que ali eu seja sucesso. Minha família anda de mau-humor, enresinamo-nos tanto contra a Copa e agora perdemos o colorido das bandeiras, ainda faz tempo para nos reconhecermos, é tempo de desculpas, deixemos as endechas pra lá. Mas não, não pode. Quem aqui cobra sucesso o faz para cobrir os fracassos de si. Ou como diz o lobo do lobo, a raposa do ser, ‘o sucesso tem muitos pais, mas o fracasso é filho órfão’. Seria eu o estúpido de mim propor que a mim seria tudo diferente? Não tenho com quem enganar, tampouco saberei contar a verdade posta como é.
De fato ninguém chegou. Em verdade, chegaram, mas chegaram aos poucos, e radicalmente fora dos itinerários cumpridos à risca desde que me lembro por quem observa. Mas ninguém havia chegado até que eu dormisse chumbado à mesa redonda no centro da cozinha. Quando acordei, o almoço estava lá fora. Havia cantoria, cerveja, gente da vizinhança, até uns parentes que há muito não se via. Bastou-me levantar e veio uma voz alta de tia, “o nosso menino acordou”, e todos lá de fora se voltaram a mim. Calei-me, despenteado, ao sonho que me tumultuava: os últimos momentos de sono foram uma mistura do som lá de fora com o alvoroço da minha cabeça. Pois é, eu não tinha mais desculpas.
Cheguei. Levantaram-se. Abraçaram-me. Até presente ganhei. Sorri-me. O meu avô fotografou o meu sono. Até a prima da vizinha falou-me algo interessante ao me abraçar, e foi quando meu irmão, de canto, perguntou “pegou quem? quantas?” eu respondi: – mulher não é coisa de se pegar, que as mulheres da festa olharam-me como a um vencedor. Minha mãe deixou claro, a minha cabeça caída à mesa da cozinha e o meu sono de chumbo só poderiam ser resultado de uma festança muito boa: alguém tinha se dado bem.
Mesmo que isso pouco significasse, a família estava feliz. Era apenas uma festa, mas alguma coisa precisa-nos ser importante. Algum de nós de nossa casa precisará ser sucesso em algo. Sempre alguém da família precisa ser o modelo de sucesso, ainda que esse modelo seja fracassado. Eis a nossa maneira de construir a verdade. Eis o método pelo qual estabelecemos os nossos valores.
Verdade por verdade e meia, verdade seja dita: – não vou desmenti-los não. Pelo menos, não nesta tarde. Tem feito domingo demais na vida da gente, está na hora do domingo, por ele mesmo, fazer algum sentido dominical. Ainda que a boa fama, nesse caso, seja somente uma boa mentira repetida por diversas vezes.