Páginas Amarelas
(J.C Lemos)
(J.C Lemos)
“Querida Alana,
Talvez isso seja apenas uma ilusão resultante de minha insanidade, talvez eu realmente esteja insano, mas... há uma grande possibilidade de que esteja certo (eu quero estar, e sei que estou). Ele me observa agora, neste exato momento. Seus olhos são dois poços de piche, vazando um pus creme, que escorre sobre seus dentes amarelados e respigam em mim, enquanto se balança na lâmpada do porão.
Não sei se você irá acreditar em minhas palavras, pois já fui consumido pela febre da loucura, mas o que estou te dizendo é a mais pura verdade. Esqueça o que te falei, não estou louco.
É tudo verdade!
Ele respira em mim. Seus chifres pontudos e etéreos roçam meu cabelo e fazem um arrepio transpassar meu corpo. Meu medo e pavor estão amplificados enquanto redigo esta carta, peço que me desculpe pela letra mal desenhada. A maldita criatura observa o que escrevo, fazendo gestos obscenos. Não sei se pode entender, mas seu riso estridente preencheu o ar agora pouco, como um deboche por algo que eu estivesse fazendo.
Sempre te amei, meu amor. Só tive, tive não, PRECISEI ficar longe de você. Tudo estava saindo do controle e se tornando forte demais para suportar. Nunca possuí coragem suficiente para te contar, mas agora você irá saber toda a verdade.
Perdoe-me por te fazer sofrer.”
As lágrimas escorriam lentamente pela face de Alana, enquanto uma profusão de sentimentos aflorava um sobrepondo-se ao outro. Pensou nos últimos momentos que passou com Josiah, e o choro derramou-se em uma torrente aparentemente infinita. O porão escuro e cheirando a mofo era iluminado pela luz da lâmpada pendurada acima da escrivaninha. O silêncio soturno e gelado se enrolava ao redor ao seu redor, amplificando os sentimentos, trazendo um frio incomodo.
Abraçou-se com a carta em mãos, ainda derramando lágrimas e sentindo-se a pior pessoa do mundo. As pernas fraquejavam levando-a ao chão, onde permaneceu. Procurando respostas para perguntas sem soluções, buscando no âmago de seu ser, algo que pudesse consolá-la, trazendo cor para seu monocromático luto.
No fundo, sabia que aquelas palavras eram mentiras e incoerências faladas por um homem que havia perdido a sanidade. Sentia cada vez mais que Josiah se afastava, afundando em um pântano profundo, onde não mais poderia ser achado.
E ela soube exatamente o momento em que isso aconteceu.
Sentada ao chão frio, ainda eram vívidas as lembranças dos momentos em que tentou convencê-lo a buscar ajuda, a se internar, a procurar um especialista. Qualquer coisa que o tirasse da situação crítica que se encaminhava para um quadro irreversível. Soube que havia perdido o jogo no momento em que ele deixara de ir a sua casa. Sabia que não teria mais volta, e que era apenas uma questão de tempo até tudo se resolver, sem nenhuma maneira bonita de terminar.
Pensava em tudo isso enquanto segurava as folhas amassadas, preenchidas com uma caligrafia estranha e garranchada. Uma semana havia se passado desde o enterro, e a casa seria vendida. Ele já não tinha mais família, e a pessoa mais próxima era ela, que cuidou para que tudo fosse ajeitado.
A arrumação já havia sido feita nos cômodos superiores, tirando todos os pertences de Josiah, sobrando apenas alguns móveis. O porão foi deixado por último. Recolheu as ferramentas, pequenas bugigangas, acessórios, pastas e os colocou em caixas, incluindo os livros que ele tanto tinha apego. Esses livros, ela iria guarda-los para si.
Sua arrumação havia sido interrompida pela carta na velha escrivaninha de madeira.
O tímido clarão do dia ainda adentrava o porão escuro, direto pelas pequenas janelas embaçadas ao redor do local. Alana permaneceu por um bom tempo, apenas chorando, sentindo tudo que poderia sentir e sofrendo por tudo que poderia sofrer. O tempo passou e minutos pareciam horas. Cada segundo mais infindável do que o outro. E duraram, até então ela decidir que terminaria o que começou, pondo um ponto final na loucura.
Levantou-se e arrastou o banquinho para perto da mesa. Colocou as folhas em cima da madeira desgastada, esfregou os olhos com a costa da mão, e respirou fundo, tentando, ineficazmente, se recompor. Fungou por alguns segundos, e ainda chorosa, retornou a leitura.
“Tudo começou na naquela noite gélida em que fomos ao cinema. Assim que te deixei em sua casa, parti para a minha, mas não contava...”
***
– Adorei o cinema hoje! – seu corpo ainda fumegava devido ao calor intenso ao qual havia sido submetida. – Tudo bem que não vimos o filme, mas valeu a pena. – concluiu com um sorriso pervertido no rosto.
– Não conte para sua mãe. – Josiah piscou e lançou seu olhar mais arrebatador.
– Pode ficar tranquilo, – se atirou para cima dele, dando-lhe um beijo demorado. – vou manter em segredo. – Abriu a porta do carro e correu, com os flocos de neve alojando-se nas dobras de seu casaco.
Com um sorriso bobo e apaixonado, ele aguardou até que Alana entrasse. Retribuiu o aceno que recebeu, engrenou o carro e saiu.
A nevasca noturna cobriu a cidade com uma manta branca e infinita. De casas a árvores, não havia uma sem a alva decoração. A vida fugia do frio como o diabo foge da cruz, por esse motivo, as ruas encontravam-se em um estado petrificado de silêncio. Os únicos sons audíveis eram dos carros que deslizavam pelas estradas de gelo, soturnos e discretos.
Josiah singrou por ruas melancólicas, cortando através da cidade e seguindo em direção à rodovia que atravessava pela floresta. Os últimos resquícios de vida ficaram para trás quando deixou a civilização. Não havia carros e nem iluminação na estrada. A noite era escura, e ninguém poderia saber quais horrores ela guardava.
Pensamentos borbulhavam em sua cabeça. O calor do sexo ainda era tenro e suculento entre as pernas, entorpecendo os sentidos e o deixando em um estado de estupor. Era mais uma vez um sexo selvagem e apaixonado. Dois anos de namoro e a chama da paixão ainda ardia forte e pulsante. O amor havia tomado conta dele, preenchendo cada lacuna com o nome de sua amada. Isso tudo seria muito assustador, se não sentisse um reciprocidade em relação a ela. O cupido agiu de forma equilibrada, arrebatando ambos com a mesma intensidade.
Forte e inesperada foi a pancada que o tirou de seus devaneios.
O pneu do carro cantou quando o freio foi acionado, fazendo-o deslizar pela pista, chocando-se com um amontoado de neve que se aglomerava no acostamento.
Ainda atordoado, saiu do carro, pegou uma pequena lanterna no porta-luvas e a ligou. Bamboleou trocando as pernas enquanto corria desajeitadamente. O que havia atropelado? Não fazia a menor ideia. A nevasca gelada soprava fortes ventos em direção a seu rosto, que assumia uma coloração avermelhada.
Respirava ofegante quando chegou ao trapo jogado na estrada.
A luz incidiu sobre o corpo estatelado ao chão, e pode então perceber que era uma mulher.
– Senhora? – sacudia-a, sem receber uma resposta.
Não acreditava que aquilo havia acabado de acontecer. Não naquele dia, nem naquela hora. Sentiu uma pontada de tristeza e desespero, sem saber o que fazer. A adrenalina corria forte por suas veias, ao modo de que suas mãos balançavam o corpo da mulher, tentando de todas as formas acordá-la.
Ela tossiu, e ele respirou aliviado.
– A senhora está bem? – era uma idosa, com um rosto sulcado e marcado por doenças. Tinha um olhar febril e embaçado. Mexia a boca balbuciando frases inaudíveis. – Não estou te ouvindo, o que foi? – Aproximou o ouvido da boca da mulher e pode escutar as fracas e quase etéreas palavras.
– Finalmente estou livre... – sussurros que se perdiam com o vento. – a morte é a liberdade, não deixe que ele te vença.
– A senhora está bem? – notou o sangue escorrendo pelo chão, gotejando embaixo da cabeça. A concussão estava causando delírios. Percebeu que ela segurava um livro entre os braços. – Vou chamar uma ambulância! – tentou se levantar, mas a mão da velhinha o segurou.
– Não quero uma ambulância. – sua voz saia sofrida, mas agora era audível. – Leve-o com você. – estendeu o livro em sua direção. Durante um momento, ele hesitou. Os flocos de neve passavam em rajadas a sua frente. A escuridão fechava-se em volta do facho de luz, e o frio penetrava em cada osso de seu corpo. Já não conseguia sentir seus movimentos e percebeu que o cabo de metal da lanterna grudava suavemente em suas mãos. Não queria perder mais tempo naquele gelo insuportável. Pegou o livro e a viu sorrir. – Vá com ele agora, não tenho nada mais a tratar com você! – gritou ainda sorrindo, e daquele jeito continuou, enquanto a vida de esvaía com o vento, sendo carregada pela morte gélida em forma de brisa.
Josiah não entendeu o que havia acontecido. Olhou para o livro que tinha em mãos, iluminando-o com a lanterna. Era velho e amarelado, as folhas amassadas se apertavam umas as outras, algumas marcadas com orelhas.
No fundo, sabia que estava tendo uma atitude incomum e irracional. Uma mulher morta a sua frente, atropelada por seu próprio carro, mas tinha os olhos incapazes de se desviarem do exemplar em mãos.
Algo se mexeu nos arbustos e o tirou de seu devaneio. Olhou apreensivo para o local. Sabia que havia animais selvagens vivendo por ali, e não estava propício a ser atacado por nenhum deles.
Fez o que tinha que fazer.
Não demorou muito para que chegassem. Contou sua história e devido aos fatos e provas, não houve problemas. Prestou depoimento e foi liberado no mesmo dia.
Não sabia o porquê, mas não mencionou o livro.
Quando deixou a delegacia, a madrugada já avançava dando indícios de uma alvorada. Chegou em casa cansado e dormiu logo em seguida, se perdendo em pesadelos.
Acordou ouvindo barulhos pesados na escada. Levantou-se morgado, pestanejando enquanto caminhava. Ainda usava a roupa da noite anterior. Chegando a escada, encontrou o livro que a senhora havia lhe dado, jogado aos degraus. Olhou desinteressado, buscando na memória se em algum momento havia trago o objeto para casa. O sono falou mais alto, então desistiu de tentar se lembrar. Colocou o livro na escrivaninha ao lado da cama, e voltou a dormir, sem mais interrupções.
***
“Era ali, que eu deveria ter jogado aquela porcaria fora.
Me livrado daquilo de uma vez por todas!
Não dei atenção para aquilo por alguns dias, mas em uma certa noite, o encontrei jogado em cima de minha cama. Sabia que não havia sido eu o responsável por aquilo, mas ignorei no momento. Minha cabeça não estava muito boa já naquela época.
Os pesadelos já haviam começado.
Mas infelizmente, naquela noite resolvi dar atenção ao maldito objeto. A princípio era apenas um livro com ensinamentos medicinais, mas só para mascarar. O conteúdo real era algo inimaginável. As letras eram ilegíveis em alguns trechos, mas qualquer um em sã consciência seria capaz de entender as imagens.
Encantamentos que remontam a milhares de anos, invocações demoníacas, simpatias e rituais. Tudo que você precisa para se tornar um demônio bem sucedido.
Estava assustado e vidrado com tudo aquilo que via, quando fui despertado pelos sons que vinham da sala. Desci as escadas com muita cautela, e percebi um vulto correndo para trás do sofá. Confesso que o medo me invadiu de tal forma, que permaneci estático por um bom tempo, fazendo uma ligação etérea entre o que havia lido/visto e o que estava acontecendo. Tomei coragem e avancei.
Nada.
Aparentemente, era apenas minha cabeça me pregando peças.
Quando virei, a coisa estava em cima da mesa. Sorrindo para mim.
Olhos negros, corpo pequeno e atrofiado. Seus chifres eram pontudos e curvados para trás. O rabo balançava de forma eufórica. Mas o pior de tudo era o sorriso.
Eu senti medo, repulsa e o pavor mais extremo que poderia sentir. E senti também a morte. Não aguentei aquilo e desmaiei ali mesmo.
Acordei algum tempo depois, e a criatura se assentava sobre mim. Um liquido gosmento vazava de seus olhos, pingando em minha camisa. Eu gritei e corri.
Olhei para trás e o vi com seu sorriso maligno no rosto, me perseguindo, se divertindo com o que estava acontecendo. Entrei no quarto e fechei a porta com um estrondo. Quando virei, ele me fitava, sentando sobre o livro.
Fiz a única coisa que poderia fazer naquele momento; gritei.
Mas não adiantou. O demônio continuou no mesmo lugar, o relincho de sua risada macabra ecoava em meus ouvidos. Senti a loucura me invadir enquanto observava a criatura. Fechei os olhos e fiquei ali, apenas esperando acordar de um maldito pesadelo.
O que não aconteceu.
Então usei minha segunda opção, que foi sair de casa. Corri pela rua como um louco, tentando ir o mais longe que podia e quando olhei para trás, novamente a criatura me seguia, bamboleando e gargalhando. Descobri que nada que eu fizesse iria me afastar, então parei, e chorando, voltei.
Não dormi a partir daquele dia.
Minhas noites eram atormentadas demais. Sempre que o sono chegava a mim, o monstrinho fazia alguma coisa para me deixar acordado. Ou simplesmente sentava-se e um lugar visível e ficava me encarando, escancarando aqueles dentes amarelos. Percebi que ele não podia me tocar, mas não era necessário. Só a presença havia levado quase toda minha sanidade.
Eu não conseguia juntar forças para te falar. Não pense em mim como um louco, eu te rogo. Alguma força, não sei dizer, me impedia. Tentei buscar ajuda no maldito livro, mas só encontrei desolação.
Nele eu encontrei algo sobre essa peste...”
O som de algo caindo tirou Alana de sua imersão. Olhou desconfiada para o livro ao chão, levantou-se e o pegou. A capa velha e amarelada continha letras estranhas.
Sentia pena enquanto lia a mensagem de seu amado, pois viu que seu caso era algo sério e realmente irreversível. Não se lembrava de ele ter alguma vez mencionado um acidente de carro. E nem mesmo seu carro apresentava ter sofrido algum impacto.
Mas as semelhanças com a descrição da carta levaram-na a perceber que o livro que segurava era idêntico ao descrito nas entrelinhas. Jogou o objeto no chão e se afastou. Pegou os papéis em cima da escrivaninha e subiu as escadas correndo, deixando todas as caixas para trás.
A luz invadiu seus olhos e a fez piscar algumas vezes. Fechou a porta do porão e correu para a saída.
Do lado de fora, ofegante e amedrontada, segurou a carta com firmeza, desamassando-a e voltando a ler.
“Há um trecho que diz que ele é um demônio perseguidor. Não quero entrar em detalhes, pois não quero que você perca seu sono. Quero apenas que você saiba, que isso tudo é real. Assim como bem, o mal também existe. O que tem que saber é que a magia está no livro e em quem o toca. A única saída para escapar de seu tormento é a morte. Quando a velha morreu, fui eu quem tocou o livro, e a maldição veio para mim.
Então, por favor, não toque nesse maldito livro, eu te peço meu amor, não chegue perto dessa maldição! Eu o escondi em um lugar onde provavelmente nunca mais será encontrado, mas caso você chegue a ver algo parecido, fuja!
Não estou suportando mais esse bafo quente e esses olhos maculados em cima de mim. O fim espreita a minha volta, e eu estou pronto para abraça-lo. Talvez eu vá para o inferno, mas o tormento será melhor do que esse no qual tenho vivido.
Escrevo essa carta como uma despedida e um pedido de desculpas. Vivemos tão pouco tempo juntos, e eu sinto muito por ter feito tão pouca diferença em sua vida. Saiba que eu te amo e sempre te amarei.
Para sempre seu,
Josiah.”
Com a torrente do choro mais intensificada do que antes, Alana deixou que os piores sentimentos a invadissem. Jogou-se no gramado do quintal e ali ficou.
Um dos homens do transporte, que terminava de arrumar os móveis no caminhão, aproximou-se dela.
– Está tudo bem, senhorita?
– Sim. – respondeu entre fungadas e soluços.
O homem sentiu-se desconfortável.
– Terminamos de acomodá-los, estamos saindo agora. Amanhã voltaremos para buscar resto. Meus pêsames pela perda. – Afastou-se rapidamente e entrou no caminhão, que partiu deixando Alana sozinha, perdida em seus lamentos.
Até que, escutou o som da porta da frente sendo aberta. Sabia que não havia mais ninguém ali, mas ainda assim pode ver uma pequena criatura passeando dentro da casa.
O demônio passou despreocupadamente, voltando logo em seguida. Fitou Alana o olhando em estado de choque, e lhe lançou seu melhor sorriso. Afinal de contas, a festa não havia acabado.
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