Lições da vida

LIÇÕES DA VIDA

Aos quase quarenta anos , ainda sou uma mulher atraente. Pelo menos, é o que percebo, quando alguns olhares me chamam à atenção. Vou contar para vocês uma experiência pela qual passei quando ainda era bem mais nova, e que mudou minha vida.

Meu marido, eu e nossa filha, que estava com seis meses de idade, fomos passar um fim de semana em uma fazenda, que, se eu soubesse como era isolada, não teria ido. Foi um percurso cansativo, e depois que saímos do asfalto, ainda andamos duas ou três horas em uma estrada de terra estreita, muitas curvas e sustos.

Mas, com calma e prudência, chegamos à fazenda. Fui surpreendida. A casa era grande, elevada, e ao rés do chão ficavam as instalações de suporte. Um arroio passava por trás da casa, e a separava de um pomar cheio de surpresas. Nós nos instalamos, quartos confortáveis, e fomos aproveitar o resto do dia na varanda que rodeava toda a casa. Um café forte, algumas quitandas como só na roça são feitas, uma conversa boa. Fomos dormir com uma sensação de quem está conhecendo um tipo de vida até então não experimentado.

Acordamos bem cedo, para um leite tirado na hora, biscoitos de polvilho assados na hora, pães de queijo, broa de fubá, coalhada, café adoçado com rapadura, bolo de aipim, queijo branco feito na véspera, frutas de todo tipo, ali do pomar. E mais coisas que nem me lembro.

A manhã foi passando pastosa, devagar. E, no final dela, vi meu marido e o dono da fazenda combinando de irem até a vila próxima, de tardinha, visitar um compadre e tomar um pouco da pinguinha que ele mesmo fazia, num alambique artesanal, instalado nos fundos de seu casebre. Além de um torresminho especial. Fiquei um pouco apreensiva, mas pensei: meu marido sempre foi responsável, que ele aproveite esse momento de descontração prometido.

E assim foi. Sol se pondo, subiram num jipe que morava na fazenda e se foram. Fiquei ali na varanda, até anoitecer, com a mulher do dono da fazenda, tentando disfarçar minha preocupação. Começamos uma conversa que foi interrompida pelo choro de minha filha. Corri até o quarto em que ela estava e fiquei paralisada com o que vi. Minha filha chorava de manso, tremia, manchas vermelhas marcavam seu corpo pequeno. Quando a peguei, percebi a febre que queimava minhas mãos. Desesperada, chamei a mulher do fazendeiro, pedi que ficasse com a pequena, que eu iria atrás de ajuda. Entrei no carro e saí como louca por aquela estrada traiçoeira. Apesar do meu desespero, não podia correr. A noite estava escura, eram muitas curvas, e fui seguindo. Quando olhei o marcador do nível de gasolina, as coisas começaram a me assustar. Será que dá para chegar até à vila? Segui com cuidado, tentando economizar, mas, de repente, o carro morreu. Tentei ligá-lo novamente, dava chutes no acelerador, e nada. A noite, uma escuridão. Pensei: vou esperar aqui, alguém deve passar e me ajudar. Tranquei o carro, recostei-me no banco, e tentei ficar calma.

Não sei quanto tempo se passou, e despertei com um vulto rodeando o carro. Era um homem horrível, com um capuz cobrindo parte de seu rosto, e mancava fortemente enquanto dava voltas em torno do carro. Apavorada, vi que ficava cada vez mais nervoso, batia no vidro, fazendo gestos para que eu abrisse a janela. Durante um tempo que me pareceu longo demais, insistiu nesse comportamento, e, de repente pareceu-me que desistira. Afastou-se lentamente do carro e sumiu no escuro da noite. Senti um alívio enorme, e me dispus a esperar por uma ajuda, por improvável que fosse. Pensava em minha filha, e minha garganta fechava.

Quando o sono e o medo já me iam derrotando, percebi que o homem voltava, ainda mais inquieto que antes. Esmurrava a janela do carro, dava socos no capô, gritava coisas que o medo me impedia de escutar. Parecendo cada vez mais alucinado, afastou-se e, olhando em volta, descobriu uma pedra enorme, que pegou com evidente esforço, e veio lentamente se aproximando. Meu pavor chegou ao extremo, quando ele se aproximou da porta e jogou, com toda força, a pedra contra a janela, que estilhaçou. Meteu a mão e destrancou a porta. Apavorada, pulei para o banco de trás, mas ele abriu também aquela porta e me agarrou pelos braços. Por mais que eu resistisse, foi me puxando para fora do carro, e me arrastando para longe. Tive a certeza que morreria ali. Quando já estávamos a alguns metros do carro, soltou-me, deu mais dois ou três passos cambaleantes e caiu no leito da estrada, parecendo exausto.

Poucos segundos depois, ouvi um estrondo enorme, seguido de um clarão ofuscante, de explosão, e quando consegui olhar, vi uma enorme locomotiva arrastando o carro, numa chuva de fagulhas e fumaça. Tinha parado o carro sobre uma linha férrea.

O homem que me fez sentir tanto medo e que se esforçou tanto para salvar minha vida, levantou-se com esforço e sumiu, lentamente e mancando, na escuridão da noite.

Alexandre Anastasia
Enviado por Alexandre Anastasia em 10/05/2014
Código do texto: T4801178
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