Tarde *
Um desimpedido facho de sol encontra uma brecha no meio das tristes nuvens gris, e, projetando-se por um breve momento como se fosse um importante holofote celeste, ilumina casualmente os passos arrastados de uma velha senhora que vem a sentar-se no banco da praça, como faz quase todo fim de tarde. A velha com o rosto ressequido, lanhado de rugas, tem os olhos cansados como se tivesse carregado o mundo inteiro por séculos. Enquanto oferece gentilmente milho aos pombos, lembra-se da vida. Sente saudades de quando era menina e ajudava o pai na lavoura de café. Toda vez que sentia o aroma do café, lembrava-se do pai. E toda vez que se lembrava do pai, sentia aroma de café. Naquela época, seu pai parecia ter o tamanho de uma colina, e é do colo dele que ela mais sente falta. Agora nem colo a velha senhora dá mais. Todos os seus netos cresceram. Ela parece esquecida de quantos netos tem. Ela parece esquecida por eles. Agora, os pombos que vêm disputar os milhos que ela traz são sua mais frequente companhia. A velha parece ser também a única amiga desses depreciados seres. É como uma cerimônia de chá da tarde, onde os pombos são seus convidados. O arrulho das aves tem sido a única conversa de que participa ultimamente. O festim é interrompido por alguém que passa de bicicleta despreocupadamente, espantando os pombos, que voam em retirada estalando as asas e despetalando-se pelo céu, como uma explosão em câmara lenta de fogos de artifícios cinzentos, azulados e arroxeados. Um deles pousa no galho de uma árvore, também antiga. É a árvore mais antiga da praça. Uma placa atesta isso aos seus pés. É uma árvore com certidão. A árvore também tem suas marcas. Uma escrita de jura de amor há muito esquecida talhada na casca, e um vaso de orquídeas plantado no tronco. Sua copa frondejante já abrigou piqueniques, e já até leu Júlio Verne. Um de seus galhos acolhe um ninho de rouxinol. Quatro filhotes estão quase a deixar o ninho e em breve se esquecerão da velha árvore também. Agora o vento sopra com força e a árvore dança e canta com seu apressado amigo. Pesadas nuvens se agrupam novamente tentando dançar também, mas, sem suavidade ou graça, esbarram nos passos umas das outras, murmurando raivosas. Gotas de chuva trazidas pela ventania que se intensifica estalam na janela do quarto de uma moça. Da janela de seu apartamento ela olha para a praça como através de um quadro. Com a chuva torrencial, a praça vista da janela da moça lhe parece um quadro de Van Gogh. Ela chega a pensar em escrever um poema inspirada pelo respingar compassado da chuva na janela, mas se esquece sobre o quê escrever e volta para debaixo do cobertor. Logo a chuva passa, as plúmbeas nuvens se dissipam, e o céu revela um tom lilás e puro. A visita do sol agora poente parece ter ruborizado as nuvens que restaram. Ele mesmo ruborizado como que envergonhado por ter se esquecido de aparecer para as pessoas neste dia nublado, despede-se da praça timidamente e deslumbra um novo horizonte, onde o dia começa do outro lado. Um menino é acordado pelos primeiros feixes do sol a acariciar seus olhos e se levanta, inflando os pulmões com os ventos do novo dia. O menino sai de casa para colher espigas de milho. Ele tinha sonhado com algo esta noite, mas se esqueceu do que era.
(publicado na 1ª antologia de contos da Academia de Luminescência do Brasil)