A Mulher que me mastigava de madrugada
Ela sumia com frequência e quando aparecia era sempre a mesma coisa. Silêncio, seguido de beijos, mordidas e abraços... Passávamos horas, largados nos braços um do outro antes de começar algum diálogo com mais de duas ou três palavras.
Às vezes eu a segurava com força, embaixo de mim, e ficava simplesmente observando seu rosto, sem que ela mesmo resistisse ou falasse uma palavra.
Havia algo de errado entre nós, ela dizia. Algo que não encaixava e que ela não sabia exatamente o que era. Eu já tinha desistido de entender o que ela queria dizer com suas frases misteriosas, geralmente lançadas em momentos inesperados.
Eu conhecia aquela mulher fazia menos de um ano, mas parecia mais do que isso. Era uma escritora e editora de jornal em uma cidade turística. Devia ter em torno dos seus 20 e poucos anos. Eu tinha 30.
Nos víamos ocasionalmente. Geralmente sem data marcada. Ela simplesmente batia-me à porta de casa com uma garrafa de vinho e um maço de cigarros. Trazia sempre consigo os seus originais, numa pasta de couro preto e os jogava em minha escrivaninha, para que eu lesse.
Isso quando não deixava uma ou outra página, dobrada furtivamente entre meus livros, esperando que eu os encontrasse num momento inesperado.
Depois que ela ia embora, e eu voltava a minha rotina, os seus textos ainda estavam lá. Uma constante lembrança de que ela estivera comigo, rondando meu quarto e fumando seu cigarro mentolado na janela.
Eu sempre deixava para ler o que ela tinha escrito de madrugada, quando não tinha sono.
Isto porque depois de tê-la lido eu me sentia como se tivesse sido atropelado por um caminhão de cimento. Era como ser mastigado e depois cuspido.
Não havia nada de ameno naquela mulher. Tudo nela era intenso e desesperado. Também assim eram os seus textos.
Eu estava, de frente a duas das suas páginas, com os dedos trêmulos a respiração alterada, sem compreender muito bem o que tinha lido.
Me levantei e fui até a geladeira e abri um longneck de cerveja.
Não estava tão gelada quanto eu gostaria que estivesse, mas era o que eu tinha no momento.
Sentei-me na varanda para olhar o movimento e esvaziar a cabeça.
Do décimo sexto andar, o mundo parece miniaturizado. Os carros parecem de brinquedo e as pessoas são como se fossem formigas.
Aquilo tudo me acalmava quando eu estava angustiado e por esse motivo eu havia alugado aquele apartamento. O vento que fazia ali também era uma constante e agradável companhia numa cidade tão quente quanto a minha.
Mas naquela noite, sentado no chão, olhando para baixo, eu não conseguia me livrar do eco das palavras que ela havia me escrito. Ela sabia como me atingir. Esse era o fato.
A verdade nua e crua é que ela parecia ter acesso aos cantos mais escuros da minha cabeça. Ela bebia de mim e destilava os mais fortes e agressivos versos e histórias.
A forma que me descrevia, tudo que me dizia era duro e intenso.
Fúria, frustração e ódio.
Acredito que ódio daquela “coisa que faltava”, que lhe atormentava e lhe tirava o sono. Ela se vingava de mim, me mastigando com aqueles versos.
Mastigado e cuspido... Completamente devastado, eu buscava na cerveja, no uísque e nos dezesseis andares do meu prédio alguma paz e discernimento para chegar àquela coisa misteriosa que tanto lhe fazia falta.
Algo que segundo ela, era presente e vivo nos meus textos,
mas apenas nos meus textos e não onde ela queria.
Dormi em cima do mistério... Dormi e sonhei. Sonhei comigo mesmo, já enrugado e grisalho.
Estávamos eu, dos dias atuais, e meu Eu mais velho, num bar de beira de estrada, com uma música indistinguível tocando ao fundo.
Meu velho eu me dava conselhos sobre amor e sobre a vida, como se falasse para um próprio filho.
Por fim, então, me disse.
“Pelo bem da tua sanidade, se fazes questão de ter alguma, fique longe das ricaças, das psicólogas, das escritoras e sobretudo das críticas literárias..."
Acordei rindo da frase final e da mensagem do meu subconsciente.
Ri da mensagem e da ironia.
Ri da impossibilidade de ficar longe daquela escritora em particular.