1975
Acordei ao som de jazz. Em meu quarto, antes silencioso, diversos instrumentos preenchiam o ambiente. Algumas luzes estranhas flutuavam diante de meus olhos. Parecia que tinha acordado em um pub. Talvez nos Estados Unidos. Mais especificamente em Manhattan.
Não sei como fui parar ali, mas estava, sem dúvidas, em um ano anterior ao que vivia. Ou deveria viver. Levantei-me, envergonhada de meus trajes. Os frequentadores do lugar vestiam roupas elegantes, ao passo que eu estava envolta em um pijama démodé de flanela. E nem inverno era. Ou era? Estava perdida em uma realidade indecifrável.
“Oi. Com licença. Que dia é hoje?”
“Hoje é dia 18 de janeiro de 1975. Quer saber a hora também?”, sorriu um homem, que usava blusa e calça social. Seus dentes eram brancos e bem alinhados. Tenho certeza de que nem uma dose ínfima de nicotina tocara aqueles lábios. Os olhos claros perscrutavam meu rosto assustado. “Está sozinha?”
“Não. Obrigada”, e saí atrás de mais explicações. Olhei para meu educado interlocutor, que, suavemente, levava um copo de bebida à boca enquanto mantinha seu olhar fixo em mim. Imaginei que minha ridícula vestimenta atraía a sua atenção, mas sua sutileza não o deixava escarnecer de mim.
Esbarrei em um garçom, que me ofereceu uma taça de champagne. Peguei e, em apenas um gole, acabei com o líquido. “Senhora, tenha cuidado. Acredito que uma distinta dama possa ficar enjoada se consumir toda a bebida de uma só vez”, e, gentilmente, retirou o copo de minhas mãos.
“Ah, não se preocupe. Acho que nada pode me deixar mais atônita hoje”, e, com uma agilidade característica, peguei outra taça. O rapaz, corado com minha resposta, sorriu e saiu, desconfiando do meu bem-estar. Enquanto servia outras pessoas, me olhava de soslaio. “Assustei o garoto. Mas creio que ele não esteja mais apavorado do que eu”.
Comecei a caminhar pelo salão. Pares deslocavam-se ao som de saxofone, contrabaixo, piano, trompete e uma forte voz feminina, que interpretava belas canções. “Cause I was born to be blue”, entoava a cantora docemente. Homens e mulheres, com mãos e corpos entrelaçados, rodopiavam pela noite de tons azuis e brancos. Vestidos vermelhos combinando com ternos escuros. Batons, lápis, sorrisos e intensa troca de olhares.
Estiquei a mão e peguei mais uma taça de champagne. O garçom era outro, não mais aquele menino assustado que me atendeu na primeira vez. “Deseja mais alguma coisa?”, perguntou sutilmente enquanto me trazia de volta à nova realidade. “Não. Obrigada”, e sorri em resposta. Entre um gole e outro, mais vagarosos, senti dedos tocarem o meu ombro. “Dê-me sua mão, senhorita, e permita a este nobre cavalheiro uma dança.”
Sorri com as palavras usadas. O homem estranho era o mesmo que ficara me encarando no começo da noite. Seria o começo ou o meio? Não sei. “Bom, acho que não. Com tantas outras mulheres, por que você optou por mim? Sou péssima dançarina. Você estará em péssimas mãos. Ou péssimos pés”, e rimos. “Olhe ao redor e você verá que é a única por quem me interessei até o momento. E acho que seremos um belo par.” Sem esperar meu consentimento, puxou a taça de minha mão, depositou na bandeja do garçom, que sorria, e rodou comigo pelo salão. “Aproveite a oportunidade que a vida te oferece. Dance comigo”, e aproximou o meu corpo do seu, olhando em meus olhos.
Em algum canto daquele lugar, Woody Allen piscava para mim. A cena seria um perfeito trecho de uma história insana do diretor se eu não a estivesse vivendo. Mas eu estava vivendo? “Pare de se questionar, querida. Você pensa muito. Sinta mais e reflita menos”, disse, com os lábios encostados no meu ouvido. “Tem razão. Mas quem é você?”
Como resposta, apenas um sorriso enviesado. “Vamos guardar essa pergunta e aproveitar sem preocupação com identidade. Os anos passarão e, no final, nunca descobriremos quem somos nós”, e rodamos. Com rostos colados, dançaremos pelo resto da noite, sem que eu me pergunte o que a vida poderá fazer comigo amanhã.