O BOICOTE À FELICIDADE
Eu a tinha por amor, desejo, encantamento, e todas essas coisas todas que se pode imaginar de alguém como que por vocação. Era ela perfeita! – e óbvio, mal trocamos cinco ou seis palavras nos três anos do colegial. Um tímido imperfeito daqui, e ela – toda vontade divina que se podia haver – pra lá.
Logicamente, os anos se passaram. É claro que nos tornamos adultos, e adulto é justamente aquele tom de maturidade no qual nos colocamos em vida para poder sublimar o passado. Correto? Pois é, também creio que não...
Tinha eu a idade do sonho passado, quase trinta ou mesmo um pouco mais que isso, os anos do milagre talvez, e não além. Eis que a tecnologia das redes sociais nos da pé do mundo de hoje, como as crianças, os demais jovens, os adultos, e como os velhinhos. Eis que por conta dessa tecnologia me chega o seguinte recado:
“por você eu me deixo devorar”.
Incrível é que, após toda certificação possível, vi-me incrédulo na constatação: era para mim o recado e o devorador seria eu mesmo (?). Imaginei-me preso em duas décadas de resignação à parte da adolescência que vivi, justo a parcela juvenil do amor, da paixão e do encantamento. Filosofei como antes não soube de Platão, entendi que amor é admiração, paixão é febre e o encantamento, por sua vez, apenas uma doce confusão. Descobri-me preso ao mundo do fundo capadócio, ócio de quem possui emprego, casa, mulher e filhos. Descobri que o ideal da vida é contrariar a adolescência.
“por você eu me deixo devorar”. Frase que ficou boquiaberta em minha imaginação.
Esperei uns dois anos ainda. Ela resolveu morar, há tanto tempo, no canto da China, passamos então esses meses todos nos comunicando através do fuso-horário, resolvi habitar a madrugada, espaço em que os sonhos bons só pintam quando estamos acordados. Uns dois anos. E eis que ela avisa estar de visita ao Brasil. Era em mim, agora adulto, o dom de tomar a decisão. Estava na cara que era aventura, simples aventura, portanto, já que os olhos não vêem, o que há por dentro há também de se passar ileso. E também, quem nunca tropeçou e logo depois se recuperou, tornando o tombo uma poeira descaracterizada na memória?
Eu precisava viver, nos minutos, horas ou momento que o acaso me permitiria, aquilo que tanto desejei na juventude. “Por você eu me deixo devorar”. Já imaginou quantas vezes você bebeu água na vida? Ou contou os passos dos quais usou desde que aprendeu a andar? E quantos dias você já viveu? Desse modo, tente entender que vivi aquela menina nos meus pensamentos por enésimas condições, já ousei perder o sono, o apetite e a postura na voz quando ela ficava sorrindo, feito imagem presa à minha cabeça, como um peso incalculável a mostrar-me o quanto desfeito de virtudes eu era. E ela, a menina, agora mulher, que nunca me havia dado atenção, pretendia-me devorador. Ela, justo ela!
Marcamos um encontro. Era almoço. Ela precisava lembrar-se de mim, eu não tinha do que me lembrar, quase nada me havia esquecido. Continuava ela sublime de sorriso em punho, continuava de corpo e alma a mesma dos meus sonhos. A mesma que me provocava arritmia no marca-passo natural. Almoçamos. Devoramos. Mas ainda mantivemos a distância mínima dos antigos encontros, embora tudo isso se desse nos dias mais atuais que temos.
No dia seguinte, as mensagens pelo celular:
– Do que trata mesmo a sua pesquisa?
Não perdi a chance:
– Do desejo que você seja a minha cobaia.
E ela:
– Tudo pela ciência!
Marcamos outro almoço. Jantar não dava, ela já tinha compromisso com a família. Ficou pro outro dia. Almoçamos. Ela usou o espaço da sobremesa e saiu para a manicure, e de lá enviou outro recado:
– Estou prontíssima para ser cobaia.
Já havia eu dito: “você iluminou a minha juventude. Nunca tive desejo maior.” E ela respondido: “esqueça o passado, adoro viver o presente”.
Dei quatro ou cinco desculpas. Adquiri um sintoma de alergia que jamais tive, avisei que estaria em tratamento, disse que faria exames delicadíssimos. Pois é, eu não fui. Ela esperou, e eu não fui. Os dias seguiram, ela voltou para o outro canto da China.
Não sei como ela encarou: foi um fora ou uma realidade lamentável apenas? Ou ambos?
Mas vi, estes tempos, pelas redes sociais na internet, que ela experimentou vestido de noiva – ficou inexplicavelmente linda – e os amigos e seguidores enviaram os parabéns.
Incrível, porém mais incrível: até o momento não tive arrependimento. Estamos velhos, é fato, mas o tempo mudou, na idade dela eu já me encontrava rotineiramente casado, e ela viverá os ditames do caso somente agora. E, belíssima, encontrou o marido tão belo quanto um casal perfeito pode se conjugar.
Verei as fotos das cerimônias nas redes sociais. Logo virão as festas, os passeios, tudo feito em parceria, talvez mais belo casal não haja.
Fato é que me boicotei. Esperei uma adolescência e meia para ter o que duas décadas depois eu poderia ter, de maneira à sorte e sem que eu me desdobrasse para isso. Mas fato é que o meu boicote prevaleceu. Parece ser assim mesmo: quando nos preparamos demasiadamente para a felicidade, passamos a desconfiar dela como a um mal que nos impossibilita.
Parabéns, minha querida. Nunca consegui ser tão sincero a desejar a felicidade a alguém. Você continua perfeita.