O que é olho clínico?
Uma das coisas que mais gosto de fazer é escrever pedidos de patentes para os clientes inventores. Claro que de quando em vez me deparo com malucos, inventores da roda ou de moto contínuos, mas isso também faz parte do jogo e tem o seu lado divertido, não vou negar.
Vc vai me perguntar porque estou dizendo isso, mas tudo tem o seu começo e a sua razão como diria um sábio chinês que esqueci o nome...
Vem a respeito de uma explicação que uma amiga me pediu porque eu falei que um cliente que ela queria me mandar e que segundo ela, inventou algo genial, era maluco
- Como vc sabe?, você não conversou com ele, perguntou ela
- Tenho olho clinico, conheço maluco pelo cheiro, sorri em resposta.
- E o que diabo vem a ser olho clinico? Perguntou
- Bom, não sei explicar, mas posso contar uma historinha e vc vai entender, respondi.
Tempos atrás eu meu irmão e um amigo dele que tinha uma fazenda no Piauí, íamos todo ano passar uns dias juntos lá, numa cidadezinha que não vou dizer o nome, onde ficava a tal fazenda. Era um lugarejo de uns 800 habitantes e olhe lá, desses que estão espalhados pelo Brasil, onde era impossível alguém ter troco para R$ 50,00. Acho que eles conheciam quando muito notas de R$ 10,00.
Ficávamos na fazenda, fazendo churrasco, bebendo e jogando conversa fora, recarregando as baterias pra enfrentar o batente mais algum tempo. Confesso que às vezes me dava uma certa inveja do pessoal, cuja única preocupação na vida era assegurar a comida do dia seguinte, o que não era lá muito difícil. Note que eu falei às vezes, porque regra geral era uma mesmice de fazer dó.
Mas deixemos o papo furado pra outra vez e vamos ao tal de olho clinico.
O amigo do meu irmão tinha uns acessos de empreendedorismo e estava entusiasmadíssimo com um projeto que tinha bolado pra fazenda virar uma produtora de leite. Confesso que não me contagiei muito com a idéia, primeiro porque a tal cidadezinha não tinha lá muitos consumidores, todo mundo já criava cabras então, leite era o que não faltava e depois, a cidade que poderia receber a produção ficava a uns 70 km de distancia e, embora não entenda nada de conservação primária ou de transporte de leite, acho que ia sair meio caro vender o leite lá, enfim, problema era dele e do banco onde ele pediu o financiamento.
Toda essa volta foi pra dizer que a sede da fazenda estava cheia de peões, que estavam fazendo obras nas instalações, um tratorista que passava o dia todo movimentando terra pra lá e pra cá e um motorista de caminhão meio que maluco, mas muito boa gente.
Então um belo dia o amigo de meu irmão me chamou no canto e falou:
- Zé, roubaram minha arma que tava na gaveta do armário no meu quarto.
-Não é possível, respondi, quem ia fazer isso, todo mundo aqui se conhece.
- o que você vai fazer? Perguntei.
-Vou esperar um pouco e ver se a pessoa que tirou se arrepende e devolve.
Ele teve essa mesma conversa com um amigo dele do local, que logo indicou o suspeito principal:
-Foi o motorista, falou, ele é doido por arma de fogo e já me levou uma espingarda uma vez.
Passamos a olhar o motorista com desconfiança e eu falei pra ele que gostava muito de armas de fogo também.
No outro dia ele me mostrou um rifle antigo que ele tinha, que era uma coisa linda e eu logo comecei a demolir as minhas suspeitas.
-Não deve ter sido ele, senão não iria me mostrar uma arma, falei.
Suspeitas abaladas, passamos a procurar outro suspeito. Desconfiei de um pedreiro, que achei que tinha o olhar de culpado, o amigo de meu irmão achou o tratorista suspeito e o próprio meu irmão pensou no mestre de obras. Cada um expunha suas razões e achamos que aquilo não ia dar em nada.
Então resolvemos reunir todo mundo na varanda e eu faria uma preleção sobre o perigo que era roubar uma arma registrada na policia federal, com porte, números identificados, o risco do fogo do inferno, o perigo de uma prisão pro resto da vida, esse monte de mentiras que a gente usa como vantagem quando fala pra quem não entende direito das coisas.
Falei uma meia hora, disse do perigo, dos castigos, avisei a quem fez aquilo que poderia colocar a arma de volta que a gente não ia fazer nenhuma represália etc, etc, etc.
Nada. Ninguém se manifestou, ficaram me olhando em silencio embora eu tenha notado que o motorista não me fitava nos olhos e o peão se coçava o tempo todo com se estivesse incomodado.
- Foi um desses dois, pensei.
O amigo do meu irmão então tomou a decisão senhoril:
-Vamos todos pra delegacia, lá o delegado vai descobrir quem foi o culpado, ele tem o jeito dele, ameaçou.
Subimos todos na camionete e fomos já às dez horas da noite pra delegacia da cidadezinha.
O delegado, um cabo da PM baixinho, meio careca, com uma barriga enorme que era a autoridade policial, nos recebeu de farda desabotoada e um palito na boca com uma cara de quem tinha acordado naquela hora.
-Esse cara não vai resolver isso, pensei ao ver a peça.
Ele nos pediu pra entrar na delegacia, uma casinha baixa com uma sala, um quarto, um banheiro nos fundos e uma cela onde numa rede, dormia um preso que ao nos ver levantou e veio pra grade me pedir um cigarro e ficou fumando e olhando com desinteresse a nossa conversa com o cabo.
Depois de se inteirar do que acontecera e advertir sobre o perigo de se guardar uma arma sem o devido cuidado, ele mandou todo mundo entrar na sala e ficar de pé em frente a ele.
-Ta fazendo cena pra justificar a besteira que vai dizer, pensei.
Ele levantou da cadeira, olhou cada um demoradamente, depois se sentou, virou pra nós e perguntou:
-tem menino lá?
-tem sim, respondi, acrescentando, tenho certeza que não foi ela, é uma menina que faz a arrumação da casa e não ia tirar a arma da gaveta.
- menina é bicho buliçoso, foi ela, pode procurar.
E voltou a sentar na cadeira com a cara de sono...
Voltamos desconsolados e no outro dia perguntamos à menina:
-você viu uma arma que tinha na gaveta?
Ela começou a chorar e foi logo pedindo desculpas, que tinha tirado a arma pra mostrar ao irmão e depois ficou com medo de devolver...
- E o que tem isso a ver com o fato de você dizer que o inventor é doido? Perguntou minha amiga.
-O cabo ter resolvido o problema do furto da arma sem ir ao local do crime, respondi. Ele olhou cada um dos suspeitos e sentiu que nenhum deles era o culpado.
_E dai? perguntou
-Isso é olho clínico, completei.