Águas da Infância

Na sexta-feira eu estava exausta. A noite inteira não consegui dormir bem. Levantei-me por duas vezes, ainda li duas ou três páginas de uma tese de doutorado de um amigo querido. O sono só me venceu perto da aurora da manhã que queria nascer.

A viagem ia ser rápida. Obedecendo aos preparativos dela, às oito estava sentada e ao volante. O destino conhecido: Pão de Açúcar, terra natal, por tantos anos não visitada. Que saudade!

O bafo do calor quente do sol nos recebeu quilômetros antes de chegarmos ao alto da cidade e só assim podermos descer até ela e nos dirigirmos ao nosso antigo ninho, a doce cidade.

Parei o carro no alto, antes de descer a ladeira de chegada. Vi o “Chico”, azul como as águas do Mediterrâneo. Achei-o estreito. Duvidei de seu vigor, mas, após apreciá-lo ao longe, desci a íngreme ladeira serpentiforme até a proximidade de uma de suas margens, para mim, íntima companheira de infância.

Sentei-me no banquinho de madeira envelhecido à margem do rio, ao lado da barraca da velha Tina. Meus olhos pararam num olhar saudoso na direção das águas que desciam mansas rumo ao oceano onde logo adiante seriam tragadas pela boca enorme das águas do mar de Penedo.

Icebergs de areia no meio dele anunciavam-me parte de seu sofrimento. O rio estava agônico. Suas águas eram ocultas lágrimas de dor e de sofrimento. Mas o rio não possuía boca, sua fala era fotograficamente metafórica e eu, àquele instante, sua mais nova advogada de defesa. O velho Chico não mais podia sucumbir porque nele estavam guardadas as histórias de tantas infâncias. A minha estava junta a essas outras tantas, nos idos, também saudosos..., de tão velhos tempos.

O pensamento levou-me a Éfeso, dialoguei com Heráclito e retornei a mim mesma, bem antes que meu dizente solilóquio se findasse.

Careceria da força das piranhas do Chico para amordaçar os que não o amassem. A correnteza azul de suas águas mornas daria-me a agilidade para me encaminhar aos órgãos competentes, atrás de sua defesa. Qualquer vacilo e eu estaria contribuindo para a sua morte.Precisava agir rápido!

Certa hora, levantei-me do banquinho e fui pôr os pés submersos no limite de sua margem de cá. O espírito das águas eriçou os pelos de minhas lembranças e eu pude crer que ele me dizia alguma coisa. O Chico queria a minha ajuda. O vento trazia-me suas palavras.

Ah! mamãe, quanta saudade me perturba a esta hora graciosa de recordação e ingrata por trazer-me lembranças de tantas coisas que não voltarão mais!

As águas continuavam passando e eu a escutar seus gemidos. O banco para trás, agora eu já submersa até os joelhos e o pensamento já bem próximo da boca do mar engolidor de rios.

Uma canoa passou próxima à margem. Acenei para o remador e fui correspondida e lá se foi o viajante, talvez também de Éfeso. Era bem provável que nunca mais o avistasse, igualzinho a tantos outros que usavam o Chico para passear, trabalhar, ir-se.

Havia um teatro dentro de mim. Minha alma declamava versos líricos. Bebi as águas turquesinas do velho rio e, para não o vê-lo seco, doei-lhe lágrimas, também mornas pelas duas dores: a de quase tê-lo perdido e a outra, se não pudesse ajudá-lo. Mas o velho Chico arrastava-se desde Minas Gerais, levava tombos e tapas e passava com seu azul quase mágico pela minha também bela Pão de Açúcar.

Lembrei-me de mim quando suas águas foram coloridas pela lua loira que se deitou nua por sobre suas águas. E, então, abracei meu próprio corpo, lavei por duas vezes meu rosto para em seguida levantar-me e dar as costas ao rio. Cadê a coragem para deixá-lo? Fiquei ali por tantas outras horas, ele, eu, e alguns goles de um rum barato que me ardia nos olhos, como se através dele houvesse bebido o outro.

Dormi na casa de tia Líbia. Fui para casa levada por amigos.

-Você chorava bastante, Áurea.

-Desgosto de vê-lo morrendo.

-Mas o rio é o rio, e você é você.

-É onde você se engana. O rio sou eu nele e ele em mim.

-Você hoje sabe coisas difíceis. Aprendeu-as em Maceió?

-É porque cevo vidas. Vocês matam até meu Chico. Em Maceió penso em vocês.

-Prima, é apenas um rio...

-Um deus! Perde a vida pelo que dá aos famintos de suas margens. Cuide melhor dele!

Manhã ainda cedinho o deixei só, sem minha companhia. Retornei de onde não deveria ter iniciado esta viagem. Meus olhos viram o que meu coração jamais pensou.