Acontece ...

Lia levava a vida da forma que escolhera e que, de certa maneira, foi como vivera nos tempos de solteira. Seus parceiros: livros, música e filmes. Além de escrever. Escrevia quando doía, quando estava feliz, quando a angústia e a frustração tomavam conta de seu ser.

Era assim quando jovem, sempre só, com a companhia de letras e melodias. Lágrimas molharam sua estrada da vida. Doença de pessoas queridas doíam muito, traição dói, sustos doem.

Contra a sua vontade, porque, jovem ainda, o mundo a desiludira, se casara. Não foi feliz. Não conseguira o que gostaria de ter, um marido, um parceiro. Decididamente, o mundo não era seu lugar. Tantas vezes tentara acabar com sua vida, mas jamais alcançara seu objetivo. Desistiu. Havia algo para fazer aqui, senão teria conseguido.

Um dia descobriu que ser mãe era a coisa mais sensacional do mundo e adoraria ser mãe do mundo. Uma descoberta incrível: havia carinho, dedicação e amor sobrando dentro dela. Finalmente conheceu algum tipo de amor, pois já havia decretado que esse sentimento era para vender livros, romances água com açúcar para mulheres sonhadoras. Ela, definitivamente, nunca sonhara com nada. A vida lhe mostrara que não havia lugar para sonhos em sua vida.

Mas conseguia se alegrar com as coisas mais simples, mais banais, que a mais ninguém alegraria. O prazer de estar em casa, não ter aborrecimentos, um livro novo, um cd novo, um dvd novo. O retorno do filho que estava viajando, ou da filha. Ou a visita dos dois outros filhos. Que bom tê-los à sua volta!

Mãe e esposa, se esquecera de que também era mulher. Mas não havia conseguido superar os seus princípios, não seria capaz de trair. Ou seria? O medo de que os espinhos da vida a ferissem era maior do que tudo. Não era paz que ela procurava, era a proteção contra o mundo, o ser humano. As pessoas não foram boas e nem sinceras com ela. Dentro de casa levava a mesma vida de quando era criança e jovem: só e rodeada de tudo o que desejasse, em termos materiais. Porque o afeto verdadeiro não conheceu jamais. Por que as pessoas pensam que com coisas materiais podem limpar suas consciências por não doarem seu tempo, não darem carinho, não serem dedicadas de forma satisfatória?

Mas foi tudo o que Lia sempre teve direito a ter na vida. Bens materiais. Se soubessem que ela trocaria tudo por uma cabana e felicidade. Mas isso não fazia parte de sua história. E havia o medo, o grande medo de confirmar o que sempre foi sua certeza: o mundo é mau, fere, magoa, trai.

Ela podia conhecer uma pessoa especial, admirar, pensar em como aquela pessoa poderia ser doce e carinhosa. Mas isso era coisa íntima, somente dela. Não partilhava nada com ninguém. Como também não partilhava seu jeito de ser mais intimamente, suas desventuras e as grandes feridas da alma causadas pela violência humana. Um rosto de gelo, uma máscara de frieza, um ar de indiferença e pouco caso. Andava na rua como se estivesse sozinha no mundo, como se pisasse na cabeça de todos. Altiva, fechada como uma ostra. A chave para abri-la? Havia perdido no decorrer da vida. Mas, sim, um dia a ostra poderá se abrir e revelar que possui uma linda pérola em seu interior. A pérola que ninguém jamais deu valor, que ninguém foi suficientemente cativante para que ela mostrasse.

O carinho, que nunca dera, estava ali, guardado, não morreu; a capacidade de cuidar também estava ali, desde sempre; o seu lado mulher, sufocado ao máximo, nunca deixara de existir. Mas ela relutava em permitir que seus segredos fossem revelados, sua intimidade mostrada. A não ser que alguém fosse caminhando, lentamente, para o seu interior, conquistando, aos poucos, um espaço na vida fechada para a vida. Por temer que isso ocorresse, nada melhor do que ficar em casa, inacessível. Apesar de saber que o destino tem suas artimanhas. Mas ela estava sempre alerta. Será que alguém poderia distraí-la ao ponto de penetrar em seu íntimo sem que ela notasse e, ao perceber, as comportas se abririam, e tudo viesse, em um só jorro, para o lado exterior? Segredos guardados há muitos anos, intimidades jamais reveladas ao mundo, quando começam a brotar, podem não parar mais até que a última verdade venha à tona.

Mas, em uma coisa ela confiava, no fluxo da vida. E sempre soube que estaria onde precisassem dela e que a sua vida era feita de muitas reviravoltas. Por isso, todos os dias, ao acordar, perguntava para si mesma: para onde estou sendo levada agora?

Campos – 28/12/2013 – 00:09 horas

Emar
Enviado por Emar em 28/12/2013
Código do texto: T4627847
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