ZÉ
A sala tinha uma aparência que transitava entre o místico e o real. Na verdade, um pouco tonto pela intensidade da fumaça do incenso de almíscar, cheguei a imaginar que real ali era apenas eu. Não, minto. Belchior chiando "...sou apenas um rapaz latino-americano...", no LP tocando no toca-discos, até parecia mais real do que eu. Eu? Quem era eu, afinal? Afora as noites de bebedeira no "Alasca", as aulas de farmacologia e patologia e a bunda fantástica da colega mais gostosa da turma da Faculdade de Medicina, todo o resto de mim era uma grande confusão. Até o piano do bar, tocado à tardinha pelo Zé, parecia irreal naquela sala enfumaçada de incenso de almíscar.
Ah! O Zé! O Zé ainda é real demais. Mesmo que tenha morrido num acidente de trânsito, o Zé continua real. Naqueles tempos de faculdade ele já havia dado a pista de como morreria. Andávamos, ao que lembro, pela primavera de 1.971. Foi quando ele, pela primeira vez, depois do acidente de moto, entrou no bar pela enorme porta que trazia do corredor de acesso às dependências do bar da faculdade. Usava bengalas. As reais, porque o Zé era tão intenso na amorosidade e na simpatia que eu imaginava anjos em volta dele, feito bengalas, ajudando a carregar aquela carga toda. Mas naquele dia, as bengalas serviam para aliviar o peso sobre as fraturas que sofrera no acidente. Não sei pelos outros, mas acho que também fui bengala auxiliar até que ele se restabelecesse e reconstruísse os ferimentos.
Mas, voltando à sala do incenso, percebi que toda ela era permeada por uma luz tendendo ao vermelho, com cantos escuros que inspiravam a curiosidade. Estátuas de Buda e fotos de templos budistas espalhavam-se pela sala. Ela usava uma destas "batas" (seria este o nome?) multicoloridas, que seguem retas do pecoço aos pés. Os cabelos morenos, presos num "coque" sobre a cabeça, deixavam entrever uma minúscula tatuagem no lado direito do pescoço. Depois descobri que, por trás da "bata" havia apenas o paraíso.
O perfume do incenso continuava intenso e parecia confundir meus sentidos.
Num momento comecei a me imaginar no bar da faculdade, sentado num banco ao lado do piano onde o Zé tocava "Morena da Praia" e ela entrava pela alta porta do bar, balançando entre as mesas, rumo ao balcão.
O Zé cantava: "Morena da praia, não é de ninguém, não pode ser tua..." E eu respondia: ..nem tua também!".
A cabeça rodava. Quando ela se aproximou, beijei delicadamente a tatuagem. Foi então que o toca-discos fez a transição e passou a tocar Elis: "Tatuagem", do Chico.
No corpo dela fui tatuagem migratória. Fui bandeirantes. O incenso me esquecia Zé. A música me lembrava Zé. O sabor e o cheiro me levava ao corpo dela.
Apesar dela e da coisa mágica que aconteceu, de quem mais lembro é do Zé.
A sala tinha uma aparência que transitava entre o místico e o real. Na verdade, um pouco tonto pela intensidade da fumaça do incenso de almíscar, cheguei a imaginar que real ali era apenas eu. Não, minto. Belchior chiando "...sou apenas um rapaz latino-americano...", no LP tocando no toca-discos, até parecia mais real do que eu. Eu? Quem era eu, afinal? Afora as noites de bebedeira no "Alasca", as aulas de farmacologia e patologia e a bunda fantástica da colega mais gostosa da turma da Faculdade de Medicina, todo o resto de mim era uma grande confusão. Até o piano do bar, tocado à tardinha pelo Zé, parecia irreal naquela sala enfumaçada de incenso de almíscar.
Ah! O Zé! O Zé ainda é real demais. Mesmo que tenha morrido num acidente de trânsito, o Zé continua real. Naqueles tempos de faculdade ele já havia dado a pista de como morreria. Andávamos, ao que lembro, pela primavera de 1.971. Foi quando ele, pela primeira vez, depois do acidente de moto, entrou no bar pela enorme porta que trazia do corredor de acesso às dependências do bar da faculdade. Usava bengalas. As reais, porque o Zé era tão intenso na amorosidade e na simpatia que eu imaginava anjos em volta dele, feito bengalas, ajudando a carregar aquela carga toda. Mas naquele dia, as bengalas serviam para aliviar o peso sobre as fraturas que sofrera no acidente. Não sei pelos outros, mas acho que também fui bengala auxiliar até que ele se restabelecesse e reconstruísse os ferimentos.
Mas, voltando à sala do incenso, percebi que toda ela era permeada por uma luz tendendo ao vermelho, com cantos escuros que inspiravam a curiosidade. Estátuas de Buda e fotos de templos budistas espalhavam-se pela sala. Ela usava uma destas "batas" (seria este o nome?) multicoloridas, que seguem retas do pecoço aos pés. Os cabelos morenos, presos num "coque" sobre a cabeça, deixavam entrever uma minúscula tatuagem no lado direito do pescoço. Depois descobri que, por trás da "bata" havia apenas o paraíso.
O perfume do incenso continuava intenso e parecia confundir meus sentidos.
Num momento comecei a me imaginar no bar da faculdade, sentado num banco ao lado do piano onde o Zé tocava "Morena da Praia" e ela entrava pela alta porta do bar, balançando entre as mesas, rumo ao balcão.
O Zé cantava: "Morena da praia, não é de ninguém, não pode ser tua..." E eu respondia: ..nem tua também!".
A cabeça rodava. Quando ela se aproximou, beijei delicadamente a tatuagem. Foi então que o toca-discos fez a transição e passou a tocar Elis: "Tatuagem", do Chico.
No corpo dela fui tatuagem migratória. Fui bandeirantes. O incenso me esquecia Zé. A música me lembrava Zé. O sabor e o cheiro me levava ao corpo dela.
Apesar dela e da coisa mágica que aconteceu, de quem mais lembro é do Zé.