Menina loba e homem urso

- Mallu.

Descia saltitando a colina como uma gazelinha, os pés descalços tocando velozes o solo para evitar enfiar os dedos numa pinha ou grimpa soltas pelas araucárias.

- Olha o lago, Mallu, não vem correndo que cai lá dentro e morre.

Era ainda uma criança, bronzeada de brincar no tanque de areia em frente à casa de tijolos no dia quente. Sua mãe estava lá com a irmã pequena e os cachorros, cantando com o toca-fitas da perua. Mas o que lhe interessava no momento era o pai.

Portanto ela atravessara a estradinha de terra, abrira um espaço na cerca de estacas brancas pesadas e pulara com cuidado para não se espetar no arame farpado, cruzara a pontezinha de tábua sobre o mata-burro e através do bosque ao lado da torre da caixa dágua, saltara sobre uma placa de bosta velha e pousara ao sol dourado que aloirava o cabelo chanel.

Abriu o sorriso banguela de leite.

O pai estava lá embaixo, encurvado na beira do lago brilhante, dourado, onde uma família de libélulas aproveitava o verão para fazer um passeio, como os Caporetto. Da beirada do bosque, ela via o lago, abraçado pela estradinha onde ficavam as vacas, o brejo ao longe, as colinas mais altas e íngremes perto de onde Mallu espreitava. E na margem mais distante da guria começava a floresta, que era clara como de sonho nessa parte, antes de fechar e escurecer com as árvores mais altas de copa cheia e úmida que cresciam perto do riacho onde Mallu jogava guerra com os meninos do caseiro Gaúcho, num mundo azul-escuro, verde e marrom onde era cada um por si.

Mallu era a única menina no meio dos Garotos Perdidos e seus cachorros, e se dava muito bem nessa posição desde o aperto inicial de mãos com cuspe trocado com o menino mais velho.

Ela mesma era um filhote de lobo de caninos brancos.

E admirava o lobo-pai segurando a varinha de pescar. Ele era muito bom pescador e Mallu queria pescar como ele.

- Papà - ela latiu quando alcançou o homem de barba por fazer e mangas arregaçadas. Era um sujeito grande de cara fechada com sobrancelhas mal-humoradas grossas e pretas que desencorajavam qualquer contato físico.

Mas quando Mallu, de mangas e barras dobradas igualzinho ao pai, o abraçou caindo sobre suas costas largas com o impulso da descida, o homem-urso fingiu susto e soltou uma risada gostosa que ecoou pelo lago; ergueu com uma mão a menina grudada em seus ombros e lhe beijou a testa.

- Papà, quero tirar esse chapéu. A palha me incomoda. Cutuca. - Fez uma careta e coçou com força a nuca.

- Não tira, menina, prometi pra Mãe que não ia deixar você tomar sol na cuca.

- Mas incomoda. A mamãe não está aqui. - Começou a lutar contra a tira de flanela ardida que prendia o chapéu no queixo irritado.

- Não, senhora, Maria de Lourdes. Se você tirar eu não vou poder te ensinar a pescar.

As mãozinhas foram repelidas do chapéu como que por um choque.

- Por quê?

- Ora, porque os pescadores usam chapéu.

- Por quê?

- Porque passam muito tempo no sol.

- Por que você não usa chapéu?

- Eu uso boné. Dá no mesmo.

- Posso usar boné também?

- Quando comprarmos um boné de menina, sim.

- Não quero boné de menina. Quero boné de tênis como o seu.

- É baseball.

- O que é baseball?

- É um jogo dos americanos.

- Então quero um boné de baseball de menino igual ao seu.

- Então agora preste atenção porque só vai ganhar um boné se conseguir pegar peixe pro almoço.

- Certo.

Mallu sabia pegar tilápias pequenas, mas eles queriam cozinhar as grandes, que eram mais ariscas e portanto mais difíceis de apanhar. Ernesto então lhe deu pão velho de um cesto para picotar e atirar as migalhas no lago, e enquanto os peixes aos poucos ganhavam confiança e subiam à superfície para abocanhá-las ele mostrou à filha como fazer uma massa misturando abacate, água e farinha de trigo de um saco para cobrir um anzol grande e brilhante.

- O nome disso é ceva. As tilápias vêm pegar o pão, ou seja, são cevadas.

- Ceva. Cevadas.

- Isso mesmo. Agora deixa que eu prendo o anzol na linha.

Com a cara vermelha suada, o homem manuseou com as enormes patas a linha, passou-a pelo buraco do anzol de cima pra baixo (assim o conjunto todo ficava na posição ideal para perfurar o céu da boca do peixe, ele explicou), deu quatro voltas com a linha em torno da peça, deu um nó e puxou com cuidado.

- Viu só o que eu fiz? Consegue fazer sozinha?

- Acho que consigo.

O homem ficou subitamente estático e a encarou de cara fechada.

- Você consegue ou não, Maria de Lourdes?

A pequena ré arregalou os olhos para o doutor Caporetto, o juiz. Ele percebeu o susto e apressou um sorriso compreensivo.

- Mallu, nunca diga que ACHA que consegue fazer algo. Ou você consegue ou não. Não tem problema. Eu prefiro que fale que não consegue a falar que acha que sim. Você entendeu?

- Acho-- Hmmm, sim, Papà, eu entendi.

- Assim é que se fala. Agora prenda a linha ao anzol como eu mostrei.

Repetindo os movimentos das mãos calejadas com as próprias patinhas, fez o nó, botando a língua pra fora da boca na concentração. Então os dois passaram a linha duas vezes por dentro do buraquinho da boia. Repetiram o processo com o peso de chumbo e finalmente apertaram a laçada na ponta dos bambus. O pai terminou de preparar as varas sob um par de olhos impacientes.

- Deixe que eu lanço sua linha.

- Eu quero lançar.

- Os peixes maiores estão mais longe da margem e precisa ter força e jeito pra arremessar lá pro meio, Mallu.

- Eu tenho força e jeito. - A pequena abraçou a vara de pescar balançando perigosamente o anzol na altura dos olhos. O urso suspirou e segurou a ponta afiada com os dedos.

- Eu sabia - comentou num tom falso de reclamação - que era um erro me casar com uma espanhola. Todas teimosas, vocês. Bravas, Dio santo. E eu fiz a raça procriar. Um homem não pode sobreviver sozinho numa casa onde as donnas mandam a menos que saiba obedecer. Está certo, Mallu, pode jogar a linha. Mas cuidado com esse anzol ou vai perder a visão. Como eu.

- Você acertou o olho com o anzol?

- Não, mas não enxergo do olho direito. Por isso eu uso óculos.

- Eu quero usar óculos também.

Ernesto ergueu os olhos para o céu numa prece silenciosa.

- Voltando à cidade eu lhe dou meus óculos velhos, mas agora esqueça isso de perder a visão e vamos trabalhar que a Mãe e Elena devem estar ficando com fome.

- Eu estou com fome.

- Você acabou de comer pão.

- Mas eu estou sempre com fome.

- Porque é magrela que nem sua vara de pesca. Mas não fale mais uma palavra porque conversa espanta os peixes. Quieta. Vaca amarela.

Mallu deu uma risadinha da brincadeira cuja próxima palavra era "cagou", mas mordeu o lábio e não falou mais. Observou o homem jogar o anzol longe com precisão, no meio do lago, e depois provou amargurada que ele estava certo quando seu próprio arremesso foi frustrado e terminou com a linha embaraçada no capim seco às suas costas. Seu rosto ficou vermelho e quente de vergonha, mas o adulto riu e agachou-se junto dela. Mãos de trabalhador envolveram os pequenos punhos agarrados ao bambu e pai e filha executaram o lance.

Satisfeito com o silêncio ansioso de Mallu, Ernesto acomodou-se com o caniço fincado na terra e puxou o boné por sobre os olhos.

- Pai.

- Hmm.

Uma tomada de ar.

- Io te voglio tanto benne - Mallu declarou orgulhosa.

- Anch'io, Maria.

Os dois pescadores, o urso corado de porte imponente e sua miniatura lupina empenhada em copiar a pose, permaneceram estáticos e logo o calor de quase meio-dia, a música dos quero-queros e o cansaço de duros 34 anos embalaram Ernesto em um cochilo. Mallu percebeu e ficou contente pela oportunidade de provar para a família que já era grande o bastante para conseguir comida sozinha, e com uma covinha de felicidade na cara empertigou-se toda e começou a cantarolar uma musiquinha.

- Lá vai uma chalana

Bem longe se vai

Navegando no remanso

Do rio Paraguai.

Um pássaro gritou que queria, queria, queria. O pai roncou.

- Ah!, chalana, sem querer

Tu aumentas minha dor

Nessas águas tão serenas

Vai levando meu amor.

Mallu ouviu ao fundo a música tocando na Bonanza. Muito mais tarde ela talvez soubesse cantar Losing my Religion - ou não - mas por enquanto não entendia uma só palavra, então ficava com sua canção.

- E assim ela se foi

Nem de mim se despediu

A chalana vai sumindo--

O sangue na sua cabeça distraída chacoalhou terrivelmente quando a linha deu um puxão antes que ela terminasse a estrofe. A primeira reação da horrorizada Mallu foi chamar o pai ou soltar o bambu e correr de susto. Mas ela não era uma mulherzinha. Pensou que seu pai conseguia pegar peixes desse tamanho quando tinha oito anos - ou maiores. E como Lena e a mãe ficariam admiradas com seu peixão.

É claro que não pensou com palavras, pois não se passaram mais que alguns segundos gloriosos entre o primeiro puxão e a queda do corpinho de Mallu, impelido para a superfície salpicada de pedacinhos de pão do açude com um último lamento agudo e dramático silenciado pela água gelada.

Valentina Caligari
Enviado por Valentina Caligari em 24/11/2013
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