De como chegar ao céu

Dez horas. As mãos sobre o azul do sofá, deixando as cinzas do cigarro nevarem a tristeza e caírem cinzas e pesadas, as mãos sobre o azul e a vontade de dizer adeus. Ou dizer simplesmente olhe, não posso ir ao parque hoje. O parque era tão perigoso: o sol sorria entre as árvores, e só Deus sabia o quanto era difícil estar sob a claridade das manhãs entre borboletas, estar entre a alegria quieta que se arrasta, dando sustos. Levantou-se. Podia ligar agora, dizer que houve um imprevisto, que precisava resolver um negócio inadiável, ou tão-somente não ir. Seria também uma resposta. Dizer não ao desespero inerte da vida que se aproximava. A vida se vivia sozinha como um objeto é um objeto e às vezes assusta quando se olha tentando raciociná-lo. Mas tinha de ir para cometer mais esse ato de amor à morte sem deixar a vida. Iria porque chega uma hora em que cair sangrando ao chão é o estouro assustador e doloroso necessário.

Porque tudo se desabrochava lento e espinhento, mas de beleza que era risco de morte olhar por uma segunda vez.

A roupa mais bela ou a que sabia não lhe cair bem? Lançou, acre, fazendas à cama. Pôr a pior possível, a mais esdrúxula como insulto à flor tranquila e aberta no campo. Mas o amor já era a beleza, mesmo que escondida. Que fazer de mim?ele sussurrava como em dor profunda exangue; um aperto violento no peito, sufocando sem lágrimas porque passara a um outro nível de sofrimento: veio a alegria de se arrastar ao chão, de violentar em silêncio a vida,pisar grama orvalhada. A paixão vem é em silêncio. Serviu-se da fazenda que lhe faria saltar a beleza sem exasperação. E se fez o mais belo possível, era pois a um assassínio que queria ir. A um profundo ataque.

Havia um caminho alaranjado a ser seguido. Havia o milharal. Deus do céu, havia o milharal.

Sua cadência tornava-se sobrenatural a si mesmo. A estrada deserta. Sempre é deserto e sufocante antes, depois mal se percebe a respiração porque a vida de repente acontece ainda que pálida. Antes tudo era tão fácil. Mas então veio a doçura, foi quando veio a doçura. Agora os banhos de sol matutinos eram viajar em ondas lentas incolores. E pacientes e passionais como o que se esquenta devagar. Tudo depois que caíra num jogo em que nada se ganhava, senão o desvario silencioso a cada movimento de peça. Que fazer de mim?agora levemente ofegava. Haveria um dia, haveria uma hora em que a luta armada viria. Talvez. Talvez nem se protegesse e desse o peito para ser rasgado pela lança, se entregasse à morte heróica dos que sabem do que vão morrer.

Ah!, o milharal. O milharal foi feito para se viver nele.

E estava convidando-o. As brechas entre os milhos chamava tão forte que era preciso virar o rosto. Ah, milharal, não posso ir, você não me pode, você me arranha, e eu te venero, você não me pode, mas eu te posso e você me quer, mas há o campo, há a fazenda e há a colheita e há o fim, e eu não aguento esperar a próxima plantação, então, milharal, me sugue já que não tenho coragem de ir a ti por medo da vida que se esconde e pulsa em nós. Por que não correr? Os milhos verdes e o vento que os balançava. Virou o rosto. Mas a nada se pode resistir sem um desespero calado. No parque teria crianças, o lago, as conversas em horário de almoço.

Apertou os olhos. A felicidade tépida escondida no milharal ficava para trás.

Teria caminhadas no parque, cisnes e relva. Teria ainda um chafariz a poucos passos duma barraca, uma árvore que antecedera a existência humana e permanecia vigiando e assombrando, um céu tão azul vívido e atordoado quanto se poderia pintar, passarinhos catando migalhas e às vezes cantando dando som aos raios de luz e nem sempre se percebia o cantar dos pássaros

– Teseu.

Chamara a voz calma e passional de quem estendera bandeira branca, a trégua, a bonança após versos em agonia: Pirra se aproximou empurrando uma cadeira. De chofre começou a procura em Teseu: alguma coisa devia fazer sentido na vida, mas o quê?viver para quê? Simplesmente vivia-se, viver não tem motivo? O bom era viver sem motivo mesmo e não dar à vida nenhuma finalidade: o que destrói a vida é a ânsia pelos acontecimentos.

O descampado ultrapassava a vista.

Será que amar e ignorar a ardência do corpo tornava Pirra superior? Pirra sabia amar uma flor, e não tocá-la. Ora, Teseu também, mas Pirra

Uma vez Adriano levara-o a seu ateliê. Pintá-lo-ia. Fazia um silêncio que nada invadia, o silêncio coexistia de leve, flutuando morno. Nada precisaria ser visto para existir. Adriano tocou o rosto do modelo para pô-lo na melhor posição; as mãos frias de quem pintaria uma imagem difícil, de quem pecava, porque não se deve jamais tentar a eternidade nesses moldes: o eterno também se vai, e continua eterno, e continua lancinado no invisível de alguma parte. Para não correr risco, Teseu procurou entrar na ordem do dia, antes que tudo se precipitasse em atos de misericórdia: o silêncio esfumaçava, condensava-se. Então aconteceu:

Teseu: Como se sabe da existência das coisas que não têm nome?

Adriano: Não mexa agora, por favor.

Pirra deitou na grama, olhando às vezes o sol sem fechar os olhos, e fechando-os vendo o sol dentro de si. À beira do lago, Teseu espiava: uma mulher. Não se foje à uma mulher. Adriano sabia. E que, sobretudo, para ele, seria então ultrajar demais o mundo. A saída é sempre continuar vivendo e caminhando, mesmo que a estrada fosse a mais infeliz porque às vezes se suporta mesmo as tristezas para evitar tocar a grande ferida.

Adriano, na cadeira, aproximou-se do lago. O lago refletia o céu. A água tão parada.

– O céu no lago. Mas quando o céu está no lago, a gente tem que se afundar para tê-lo.

O chão poderia abrir-se, as rochas desmoronarem, o céu precipitar uma noite em pleno meio dia: há momentos em que se espera sem medo o fim do mundo. Teseu ofertava o coração à destruição bela como é belo fim, porque de repente renuncia-se à vida que desde a epigênese era protegida, e entrega-se em carne viva ao mundo.

Adriano olhava-o.

A beleza coquete de Teseu dava a Adriano um sono triste. Esperava sem a expectativa de um surgimento; apenas esperava, silente.

– Adriano, Teseu balbuciou como se o mundo houvesse se esvaziado e, com muito esforço, guardasse um nome não para se salvar, mas, para que mesmo no fim, reinasse o último sopro empoeirado de poesia.

Adriano corou. Porque o coração de repente descontrolou-se: o desespero de viver enfim chegara rutilante a tensionar-lhe os nervos. Deus, era isso, a graça: o desmaiar tão rápido e tantas vezes, que é um cair fundo e leve e que mal dá tempo fechar os olhos.

Teseu emergiu ignorando a sede de ar do corpo.

– Adriano, dor é para a vida inteira.

– Eu só queria dizer que – uma nuvem lépida e esfumaçada destolheu o sol no meio do céu – que eu vou me casar, Adriano disse.

Mas agora nem todo sol seria suficiente, e nem queimava mais a pele exposta de Teseu. O chão girou um pouco e um impulso elétrico percorreu-lhe as veias em célere vertigem. Vou comer sequilhos e café sem leite no jantar, ah, eu tenho tanta coisa em casa para ler ainda, depois posso ficar sem fazer nada sentado à poltrona pois o frio da noite é a vida correndo sem medo pela casa

A doçura. Era a doçura.

Teseu sugava a água salobra do lago com os olhos. Seus olhos que lacrimejavam. O sol. O sol a pino.

– Eu só sei que – Adriano interrompeu-se como se perdesse o juízo diante duma verdade diabólica que, mesmo existindo um deus, era a verdade – que eu não posso ser feliz. E derretia-se tácito.

Teseu de pés tão firmes ao chão. O vento começara a vir mais forte. O alegre meio do dia. Teseu pensou em mergulhar no lago: mas e se não houvesse fundo?afundaria para todo o sempre, enquanto o céu afastava-se, afastava-se. O sol tão quente. Tudo era tão simples, reluzindo, existindo. Tudo um susto sem taquicardia: a verdade que ele guardara amedrontado fugira e atacara-lhe como um frankenstein: não me crie, não me guarde.

E assim era a grande paz.

Dor se inventa, mudo revoltou-se. O que há é café da manhã sozinho à mesa com Chopin. Apenas. Penas. O vento soprava.

– Vocês podem visitar-me às vezes, não podem?

Era só por não saber o que dizer mesmo. Para camuflar a palavra maior, a impronunciável. Pirra prestava atenção ao solilóquio, a distância. Adriano rapidamente tocou a mão de Teseu no átimo em que a pedra atingiu deste a testa. Então, sim. Sim, Teseu sentiu um mudo remorso azedo transmitido por Adriano, um néctar divino transbordando, porque se aqueles olhos não fossem divinos, nada mais seria. O sangue ralo percorrendo a testa de Teseu adormecido, indolor. Ainda haveria o milharal.

Heitor K
Enviado por Heitor K em 20/10/2013
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