É TUDO OU NADA
Em uma sexta-feira de fevereiro, Tania e Erika decidiram ir a um show de uma escola de samba, num clube na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Como já era previsto, o lugar em pouco tempo fervilhava, e o ar condicionado não dava vazão. Após uma hora de espetáculo, Tania sugeriu que saíssem um pouco porque ali dentro estava um calor insuportável. As moças foram para a varanda onde corria uma brisa. Enquanto Tania observava o jardim, muito bem cuidado, Erika olhava em torno, procurando alguém familiar. De repente, ela exclamou:
- Olha lá aquele cara de camisa polo com listas azuis! É o Alexandre! Eu o conheci no Leblon antes de viajar para Londres. Nossa! Continua um gato! Ih, ele me viu! Está vindo para cá.
Alexandre chegou acompanhado de um amigo que não tirava os olhos de Tania. Feitas as apresentações, os quatro procuraram um lugar menos barulhento onde pudessem conversar. Acabaram sentando junto ao bar da piscina, e ficaram ali até tarde. Tania gostou de Roberto logo de cara. Ele era alto, com os cabelos encaracolados, também estava de jeans e camisa polo, mas o que marcou mesmo foi seu perfume inconfundível. Ao se despedirem, na porta do clube, Roberto pediu seu telefone e disse que, em breve, ligaria.
Tania ficou na expectativa durante toda a semana, mas só, na quinta-feira, antes do carnaval, que ele telefonou. Combinaram de sair à noite. Às oito horas o interfone tocou, e Tania desceu. Roberto sugeriu que fossem a um barzinho ali por perto porque seu carro estava no conserto. Ao chegarem lá, ela estava prestes a se sentar de frente para a rua quando ele, delicadamente, pediu para que trocassem de lugar, pois ele nunca sentava de costas para a calçada. A conversa dele era agradável, mas embora ele parecesse estar à vontade, de vez em quando, olhava para os lados, como se estivesse checando a área. Apesar de achar aquilo meio esquisito, Tania preferiu não fazer nenhum comentário a respeito.
Ao saírem do bar, Roberto optou por um caminho diferente para levá-la em casa. Iam trocando ideias, rindo, porém ele estava o tempo todo atento. No entanto, o que mais a intrigava era que apesar de terem conversado bastante, ela não ficara sabendo nada de muito relevante sobre ele, a não ser que estudava Direito. Ele tinha uma habilidade especial para extrair informações, mas sabia escapar da bisbilhotice alheia como um peixe ensaboado.
Quando chegaram na porta do prédio dela, Roberto a beijou. Tania se deixou levar, porém, em dado momento, abriu os olhos, e viu que ele também estava de olhos abertos. Podia parecer besteira, mas ela se sentiu incomodada. A impressão que dava era que ele não relaxava nunca. Ao se despedir, Roberto abraçou-a, e Tania pareceu sentir algo nas costas dele, bem na altura da cintura. Ela podia quase jurar que era uma arma, porém, mais uma vez, não se atreveu a fazer perguntas.
Como Roberto dissera que ia viajar com amigos no carnaval, ele e Tania não se viram no feriado. Ela não gostou muito da ideia, mas resolveu não comprar briga logo no início da relação. Na Quarta-Feira de Cinzas, ela foi à praia com alguns amigos, inclusive Katia e Alexandre, que estavam namorando. A esta altura Katia já havia dito que Alex era oficial da Marinha. Tania, então, fez o possível para saber mais sobre a vida de Roberto. Ela achava que talvez os dois rapazes fossem colegas de farda, mas Alex disse que haviam se conhecido numa academia de muay-thai, e aquele dia no clube, tinha sido a primeira vez que haviam saído juntos para pegarem gatinhas.
Roberto voltou de viagem na quarta-feira à tarde. Ele e Tania passaram a se ver com frequência e, aos poucos, foram se deixando envolver por uma forte atração. Havia química entre o casal. Tania percebeu, no entanto, que Roberto parecia somente se entregar, entre quatro paredes. Nessas horas, até beijar de olhos fechados ele conseguia! Contudo, às vezes, ele parecia tão estranho que quando eles iam a um motel, ele a amava como se fosse pela última vez.
Três meses se passaram. Tania estava feliz, mas uma coisa a deixava inquieta. Mesmo após esse tempo de namoro, ela pouco sabia da vida de Roberto. Ele morava em Laranjeiras, mas ela ignorava o nome da rua. Ele tinha dois irmãos, porém ela desconhecia o que faziam. Além disso, muitas vezes, ao ligar para ele, seu telefone estava fora de área. Tania sentia-se surpresa com seu próprio comportamento. Ela que tinha por hábito perguntar tudo, dessa vez ficava calada. Embora morresse de curiosidade, ela sentia que tinha que confiar em Roberto. Quando ele estivesse pronto, ele falaria.
Uma noite, os dois foram a um restaurante mexicano no bairro do Jardim Botânico. Como já chegaram ali um pouco tarde, acabaram sendo os últimos fregueses a saírem. Eles foram direto para o carro. Embora Tania estivesse alegrinha devido à tequila que tomara, ela podia sentir que Roberto estava tenso, mas ela achou que era porque a rua estava um tanto escura devido à copa das árvores. Ao chegarem perto do veículo, Roberto ia abrir a porta do carro, para Tania entrar, quando um homem surgiu de trás de uma grande árvore. Ele tinha uma arma na mão. Queria dinheiro, as chaves do carro, e mais os relógios dos dois. Roberto notou que o homem estava nervoso, pois sua mão tremia muito. Ele então não pensou duas vezes, empurrou Tania para o lado, e acertou um tiro certeiro na testa do sujeito. Foi tudo muito rápido! Ela ficou olhando para o homem caído até que Roberto obrigou-a a entrar no carro. Ele correu, abriu a porta do seu lado, deu partida, e saiu em desabalada carreira antes que alguém aparecesse.
Por sorte, Tania não havia se machucado, contudo, estava tão chocada com o que acabara de presenciar que parecia anestesiada. Ia muda, petrificada, olhando pela janela. O silêncio separava o casal. Ela nem mesmo lembrava como conseguira entrar no carro. Só se recordava da ordem que recebera de Roberto para colocar o cinto. Ela obedecera à voz de comando dele como um autômato. Aquele homem frio não parecia ser o seu Roberto.
Rodaram por um tempo até que ela percebeu que estavam na Barra. Ela não entendia porque tinham ido tão longe. Quando ele embicou o carro em frente a um motel, ela olhou para ele com espanto e horror. Como ele podia pensar em transar se há uns minutos atrás havia matado um homem? Ela pareceu despertar daquele transe e disse:
- Roberto, se você pensa que eu...
- Calada. Lá dentro eu explico. Nem um pio.
Quando entraram no quarto, ele tirou a pistola das costas, uma Glock G25, e colocou-a sobre a mesa. Tania não conseguia encará-lo. Ele a fez sentar na beira da cama, e olhar para ele. Foi então que contou toda a verdade. Ele era um atirador de elite – um “sniper”. Fazia parte de uma das equipes do grupamento aéreo da Polícia Civil. Morava sozinho e não a levava em sua casa para não expô-la ao perigo. Como eles se conheciam há pouco tempo, ele tinha que ser cauteloso, e quanto menos ela soubesse da vida dele, melhor. À medida que ele ia falando, ela ia lembrando: da sua preocupação ao sentar num lugar público, das rotas sempre diferentes, do olhar desconfiado,... Quando Roberto acabou, ela pediu para ir embora. Ele não argumentou. Ao deixá-la em casa, perguntou se poderia ligar novamente, mas ela disse que precisava pensar.
Tania não conseguia esquecer a imagem daquele homem caído com uma bala na testa. Ela sabia que Roberto agira daquele jeito para protegê-los. Mesmo que entregassem o carro e o dinheiro, não havia como garantir que o sujeito não atiraria neles. O cara estava descontrolado, talvez até estivesse drogado. Entretanto, tudo aquilo era muito forte para ser simplesmente ignorado.
Foi uma fase complicada para Tania. Ela começou a ter pesadelos frequentes, e mesmo durante o dia, lembrava-se da cena pavorosa, mas apesar de tudo, sentia a falta de Roberto. Passados uns dez dias, ela capitulou, e ligou para ele. Ela continuava bastante apreensiva, mas a saudade falara mais alto. Ao encontrarem-se, amaram-se loucamente. Houve entrega, sofreguidão, paixão.
Dali a uma semana, uma parte da Zona Norte da cidade acordou, antes das seis, com o barulho de helicópteros. Uma megaoperação havia sido montada para que a polícia entrasse numa favela dominada por traficantes. Tudo estava transcorrendo como planejado. A equipe do comando aéreo estava dando apoio ao pessoal de terra. De repente, todos ouviram rajadas de metralhadoras, vindas do alto do morro. Uma das aeronaves foi atingida. O piloto bem que tentou um pouso de emergência, mas acabou caindo na mata.
Às sete da manhã, Tania se levantou. Ela foi para a cozinha fazer o café e enquanto punha a chaleira para ferver, ligou o rádio. O noticiário a fez gelar – um helicóptero da Polícia Civil havia sido abatido. Mesmo sabendo pouco sobre Roberto, ela lembrou-se de que ele havia dito “grupamento aéreo”. De mais a mais, numa outra ocasião, ele mencionara que gostava de voar. Ela se recordava bem do rosto dele ao contar aquilo. Parecia mais um menino encantado com seu novo brinquedo do que o homem frio que puxara o gatilho e matara um bandido na sua frente.
Ao tentar ligar para o celular dele, dava caixa postal direto. Tania estava aflita, porém a rádio não trazia nenhum dado novo. A única informação era que o aparelho caíra num local da mata, de difícil acesso. Felizmente não havia explodido, porém não se sabia ao certo se havia sobreviventes ou não. As equipes de resgate já estavam a caminho.
Às oito horas, Tania foi para o trabalho, angustiada. O tempo parecia se arrastar. Os repórteres das mais diversas estações não tinham nenhuma informação nova, e ela mal conseguia se concentrar em suas funções. Na hora do almoço, Tania foi para a cozinha, do escritório, colocar seu prato para aquecer no microondas. Ela não tinha fome, porém sabia que precisava ingerir algo. Aproveitou que ainda não tinha ninguém por perto, e ligou o rádio do celular. Um repórter estava dando a mais recente notícia: os tripulantes do helicóptero Esquilo, prefixo PPEIH02, haviam sido encontrados. Quatro estavam feridos, mas aparentemente sem gravidade. No entanto, um policial havia sido atingido por um disparo na cabeça, e viera a falecer. Ainda não tinham seu nome, mas voltariam com mais informações a qualquer momento.
Tania entrou em desespero. “Ai, meu Deus! Não pode ser o Roberto!”- ela pensou. Começou a rezar enquanto ouvia o resto da reportagem. O locutor só fazia repetir, com outras palavras, a mesma notícia. Aquilo era uma tortura. Até que passados uns dez minutos, foi dado o nome do policial. Era Alexandre Souza Reis. Tania desligou o rádio, aliviada. No entanto, sua tranquilidade durou pouco, pois ela lembrou-se do namorado de Katia. Tudo bem que ele não era o único Alexandre nesse mundo, mas ela estava com um pressentimento. Era bem verdade, também, que Katia dissera que ele era oficial da Marinha, mas será que era mesmo? Ou será que aquilo era só fachada? Nesse momento, Katia entrou na cozinha.
- Katia, me diz uma coisa, qual é a patente do Alex na Marinha? – perguntou Tania.
- Ih, amiga, babado. Alex não quer que as pessoas saibam, mas pra você eu vou contar. Ele é da polícia civil, e trabalha num daqueles helicópteros. Mas por que você está perguntando?
Antes mesmo de Tania falar alguma coisa, Sandra, a recepcionista, entrou na copa e foi logo dizendo:
- Gente, a coisa tá preta lá pros lados da Zona Norte! Acabei de ler num site que encontraram o helicóptero que caiu.
- E que mais o site dizia? – perguntou Erika, assustada.
- Todos os tripulantes conseguiram sobreviver com exceção de um. Acho que era um tal de Alexandre Souza Reis ou Silva Reis. Alguma coisa assim.
Katia foi ficando branca, tentou se apoiar na mesa da copa, e se não fosse pela rapidez de Tania, teria ido ao chão. As meninas acudiram-na e, em pouco tempo, ela recobrou os sentidos, mas começou um choro convulsivo. Tania estava tentando acalmar a amiga quando seu celular vibrou. No visor aparecia: Roberto. Ela deixou Katia aos cuidados de Sandra, e foi atender a chamada. Roberto estava bem. Seu helicóptero era outro. Embora Tania se sentisse um pouco mais calma, ela não podia ignorar a dor de Katia.
Tania contou ao chefe o que acontecera, e ele a liberou para levar Katia em casa. Ao chegarem lá, Tania conseguiu, a muito custo, que a amiga tomasse um banho, comesse algo e engolisse um sedativo. Depois, Katia conseguiu finalmente dormir. Tania ficou ali velando o seu sono, mas, ao mesmo tempo, sua cabeça não parava de pensar um minuto sequer. Essa era a vida da mulher de um policial? Será que era isso que queria para si?
Às nove da noite, Tania já estava, em casa, de pijamas. Estava exausta. Quando já ia deitar, o telefone tocou. Ela não precisava nem olhar para o celular para saber de quem se tratava.
- Alô. – disse Tania.
Roberto falou por um tempo enquanto ela só ouvia. De repente, ela o interrompeu e disse:
- Roberto! Roberto! Uma vez na vida fique calado e me escute. Pensei muito em nós dois, e entendi que amar um policial é um pacote fechado – é tudo ou nada. Tem o lado bom, que é estar perto de quem se ama, mas tem também a angústia de viver sobressaltada, sem saber se seu homem volta de uma missão ou não. Quem tem a sua profissão, Roberto, precisa de uma companheira tão corajosa quanto você. Desculpe, mas não é esse o meu caso. Eu amo você, entendo a importância do seu trabalho, porém não consigo me imaginar, passando o resto de minha vida, sofrendo como no dia de hoje. O problema não é você, sou eu. Você precisa de uma guerreira, e eu sou covarde. Sinto muito. Adeus.
Ao dizer as últimas palavras, Tania desligou o telefone, apagou a luz e chorou até conseguir dormir.