A PONTA DO ICEBERG
Quando eu estava com dezoito anos, ganhei uma nova vizinha que veio a se tornar uma grande amiga – Lucia. Começamos a nos relacionar ainda na semana da mudança, e aos poucos descobrimos que tínhamos várias coisas em comum: éramos filhas únicas, gostávamos de arte, cinema, teatro... À medida que íamos conversando, fomos encontrando outras semelhanças – até dificuldade para dormir, nós tínhamos. No entanto, enquanto o meu transtorno eram os pesadelos, o de Lucia era outro. Ela não conseguia relaxar ao deitar porque as imagens do dia apareciam como num caleidoscópio. Depois, ansiosa que era, passava em revista os compromissos da manhã seguinte. Por último, checava quase que a agenda da semana inteira. Não era de se admirar, portanto, que ficasse insone.
Os anos foram passando. Lucia casou-se e mudou-se. Mais tarde, veio o divórcio e ela voltou a morar no meu prédio. Para nós, era como se ela nunca tivesse saído dali. Retomamos a amizade e as confidências. Uma tarde, nós estávamos falando de sonhos quando ela me perguntou sobre meus pesadelos. Fiquei feliz em poder dizer que após a terapia, eles haviam sumido, contudo, Lucia ainda pelejava para dormir mesmo após quase cinco décadas.
Em 2010, o seu tormento tornou-se um pouco diferente. Em vez de ficar acordada devido a uma agitação mental, Lucia passou a apresentar um desconforto físico que não permitia que ela descansasse de maneira satisfatória. Ela passava a noite inteira encolhendo, esticando, cruzando ou descruzando as pernas. Em alguns momentos, mexia só uma, em outros, eram as duas. Isso acontecia dezenas de vezes, noite após noite, e o pior é que era um movimento involuntário. Após algumas semanas, Lucia estava exausta. Ela conversou com várias pessoas a respeito do problema, mas como ninguém nunca ouvira falar de um caso igual, ela resolveu consultar o oráculo dos tempos modernos - o Google. E foi aí que começou a pegar o fio da meada.
Ao pesquisar na Internet, descobriu que existe um distúrbio chamado Síndrome das Pernas Inquietas. O assunto despertou seu interesse, e quanto mais lia a respeito, mais suspeitava que era este o seu caso. Entretanto, ao ver vídeos de portadores de SPI no site do YouTube, ela não teve mais dúvidas – aquelas pessoas passavam pelo mesmo inferno que ela.
Seu próximo passo foi procurar um neurologista que pediu uma ressonância magnética do crânio. Após estudar o exame e fazer vários testes, o médico receitou um fármaco. Lucia sempre fora curiosa, assim sendo, tão logo saiu da drogaria leu a bula. Lá dizia que o remédio era indicado para SPI e para ... Doença de Parkinson. Ela ficou um tanto assustada porque tinha uma tia que sofria desse mal. Entretanto, achou que não havia motivo concreto para acreditar que tinha DP já que sua única queixa eram as pernas agitadas. Todavia, na consulta seguinte, ela já estava com a mão direita tremendo um pouco. Durante a conversa com o Dr Rubens, ela pediu que ele fosse franco.
- O meu caso é Parkinson?
- Sim. Não comentei nada na última vez que esteve aqui porque você não me perguntou. Sabe como é, tem pacientes que preferem não saber.
Embora Lucia estivesse desconfiada por causa da bula, aquela confirmação caiu como uma bomba e a deixou muito infeliz. Por alguns instantes ficou calada, tentando absorver o baque, entretanto, sempre preferira a verdade e dessa vez não seria diferente. Fez todas as perguntas que lembrou na hora. Ao voltar para casa, ela tocou a campainha no meu apartamento para desabafar. Fiquei perplexa com o diagnóstico do especialista. Senti-me impotente sem saber o que dizer. A única coisa que me ocorreu foi hipotecar a minha solidariedade, dando um abraço apertado na minha vizinha. Foi um dos momentos mais difíceis pelos quais passei, e para ela, então, nem se fala.
Como nessa época Lucia sabia pouco sobre a doença, ela tratou de ler tudo que encontrava. Coitada! No começo pensava que o único inconveniente seria um simples tremor numa das mãos e mais nada. Conforme ia se inteirando sobre o distúrbio, ficava mais preocupada com o seu futuro. Lucia, então, precisou tomar um antidepressivo para combater a profunda tristeza que se apoderou dela. Ela tomou o remédio por dez dias, depois parou. Além de se sentir melhor, ela achou que era hora de reagir. Ela não podia ficar tomando um medicamento tarja preta pelo resto de sua vida.
Hoje em dia Lucia ainda vive o que os médicos descrevem como “lua de mel com Parkinson”, isto é, o estágio inicial da doença quando os sintomas são leves. Embora ela saiba que fases piores virão, procura viver um dia de cada vez já que não adianta sofrer por antecipação. É lógico que ela tem seus maus momentos, pois é impossível ser alegre e otimista o tempo todo, porém ela agora já reconhece seus limites e procura aceitá-los. Apesar de tudo, Lucia acredita que enquanto há vida, há esperança.
Dessa convivência com minha querida vizinha, aprendi a respeitá-la ainda mais. E também tenho pensado na ironia da nossa existência, e das lições que podemos aprender no dia a dia. Quantas vezes olhamos para alguém e, por alguns instantes, gostaríamos de estar em seu lugar, porém o que vemos é só a ponta do iceberg, o resto está submerso. Lucia veste-se bem, está sempre às voltas com uma agenda cultural agitada, e ainda consegue viajar, inclusive, para o exterior. No entanto, esse padrão de vida que muita gente poderia invejar, ela trocaria de bom grado por ... saúde.