Mais que torcedores (EC)
Ela ligou para lembrá-lo do encontro: ele sempre esquecia, e o último desnamoro acabara assim por causa de coisa assim; não deixaria o mesmo acontecer hoje – não hoje, de jeito nenhunzinho!
Aproveitou e lhe deu dicas sobre aparências e outras mais. ‘Use a camisa rosa-bebê, que mulher fica maluquinha quando vê homem com essa cor aborrecida... Combine com a colônia à base de sândalo, mas não exagere. Lave as mãos, depois: imagine se ela der o ‘sinal verde’, aí você vai sentir cheiro de homem na pele dela?! Foi à manicura? Semana passada? É, dá para enganar. Também não é bom passar logo essa imagem de metrossexual: tem gente que confunde. Eu sei que você não é... eu sei... Fez a barba? Certo, deixe isso para um pouco antes de sair e use a loção antialérgica. E passe hidratante nas mãos. Como é mesmo o nome dessa?... Deixe pra lá, me diga depois... E não se atrase, que mulher detesta esperar!’
A amizade existia há mais de cinco anos. Ela relembrou a primeira vez em que se viram, e do sorrido dele. Ela lia um romance água-com-açúcar, esperando sua vez e meio distraída, mas o engraçadinho furou a fila do caixa eletrônico, alegando pressa demais. ‘Demais é falta de respeito!’ reclamara, indignada. O sorrido (oitava maravilha do mundo contemporâneo, eterno acompanhante das palavras simples, típicas dele) era objetivo, mas ela se sentia absolutamente subjetiva, àquele tempo.
Então ele se dirigira ao fim da fila, dois lugares atrás dela, e havia conseguido se aproximar sem que ela se desse conta. Perguntou que livro era aquele, perguntou se ela morava por ali... apresentou-se... trocaram ideias sobre livros, o bairro, filas de banco, ele sorrindo como se a vida fosse festa... (Ela logo se apercebeu que ele não havia pedido desculpas pela tentativa de descortesia, apenas recuara da 'maléfica intenção'. Ainda riam da expressão, cunhada na primeira conversa, mas ela dizia que isso servia para que ele não esquecesse que respeito é costume, não circunstância.)
Ele estava sempre sorrindo - talvez costume, decididamente, não circunstância... E quem sabe por isso não lhe faltasse companhia, enquanto ela era tão séria... Há tempos não namorava – havia desistido desde que um rapaz questionara a amizade. ‘Não sei o que pensar disso...’ cismara o desavisado. ‘Não há o que pensar’, ela retificara. O sujeito não a procurara mais e assim foi melhor: ‘Imagina se tenho paciência com esse tipo de controle!’. Lembrou-se dele ouvindo-a, mas não acreditava que ‘escutava’, já que a atenção dele parecia estar longe - ele piscara, como quem acorda de repente...
Eles se ligavam de madrugada, de tarde, da cozinha quando tinham dúvidas sobre o ingrediente ou o tempo de uma receita, da academia... No começo ela não era tão invasiva, mas o defeito dela era timidez, ele dissera, um dia. Aí, ela perdeu pudores (mas não todos, que falta de vergonha na cara era coisa lá dele...).
E conversavam sobre tudo: o trabalho dele, a terapia dela, a gata siamesa dele, os pais ausentes dela, o mestrado dela, a viagem adiada dele, a falta de vergonha dele, a inteligência dela, os quatro quilos a mais dela... Ele garantia que ela não estava gorda: um colega de trabalho até lhe perguntara quem era aquela ‘gata’. ‘Minha melhor amiga, e trate de manter os olhos, as mãos e o resto do corpo todo longe: é muita areia pro seu caminhão’. Ela quis saber do rapaz, ele disse que era do tipo bonitinho, mas ordinário. ‘Não entendo...’ – ela, séria, como sempre. ‘Eu sei’ – e ele não sorria. E ela sentira uma espécie de medo raso e fino, porque o sorriso dele a acalmava (mas não conversavam sobre isso, de jeito nenhunzinho).
Há tempos não namorava e hoje não seria diferente, portanto não deixaria que ele a procurasse – em tentativa de ‘aproveitar a noite com minha melhor amiga’.
Depois do banho demorado, da escolha cuidadosa da camisola, pegou o conhaque que ele havia dado de presente dois dias atrás, destampou-o, cheirou a rolha... Verteu um pouco na taça bojuda, avaliou a cor contra a luz e bebeu um gole, desviando suavemente o líquido pelos dentes, língua e palato. ‘Muito bom! Não sei onde consegue essas preciosidades, deve ser por causa daquele sorriso.’ Beberia devagar, esperando o telefonema. Ele ligaria, mas não se estivesse na cama com a nova conquista. No caso, passar-se-iam três dias, mas a dama já seria carta fora do baralho. ‘Aquele sorriso!...’
Degustava a segunda taça quando a campainha tocou: ele. Da camisa rosa-bebê nem a mais ínfima nuance; só o sândalo ao longe, feito música da boa. E nem um meio sorriso. ‘E o seu encontro...?’
Ele entrou e fincou-se à frente dela, sem piscar. ‘Você não acha que já perdemos muito tempo? Eu cansei...’
Ela parou de respirar. ‘E eu, que nem sabia que tinha esperança?...’
A porta foi fechando devagar, como quem tem todo o tempo do mundo - e sabe que nem necessita.
Do lado de fora, duas vozes suspiraram em uníssono:
- Finalmente!
A voz de luz rosada reclamou:
- O trabalhão que tivemos!... Ingrata! “Cor aborrecida”! Você acredita nisso? Acredita? Depois de todo esse tempo pelejando e roendo as unhas de tanta aflição?
Plácida, a luz marrom respondeu:
- Conseguimos, é o que importa. E recordo bem de você, no começo, acostumada demais com outra cor.
- É, lembro, também... mas de jeito nenhunzinho bobagem assim acontecerá de novo!
As luzesvozes se misturaram em alguns risos e foram se desvanecendo...
Porta adentro, ponteada por sorrisos e silêncios, outra calma acontecia.
*Caro Leitor: este texto faz parte do exercício criativo do site Encanto das Letras, cujo tema é 'Na torcida'. Acesse o link e leia outras produções de colegas recantistas; sei que você também se encantará...
http://encantodasletras.50webs.com/natorcida.htm