De tempestades e sonhos

Começou de repente e ninguém notou.

Uma garoa fina que aveludava os vidros das casas e dos carros e deixava minúsculas gotas sobre a copa das árvores. O vento soprou e mais nuvens se uniram no céu e a chuva começou a cair, como num dia normal de inverno. Passaram-se dias, e o encontro das águas foi inevitável. A terra, saturada de tanta água, encharcada e mais que intumescida, regurgitava de suas entranhas o que já havia virado excesso. Já desciam, unidas e reencontradas, irmãs separadas na infância, as águas dos riachos ribeirinhos que tanta alegria nos davam em nossos banhos nos verões de nossa meninice. Já com tristeza lavavam nossos pátios e carregavam as flores que meu avô havia plantado com tanto zelo. O vento soprou mais forte e o céu, rajado de luzes, fazia-se temível. Com desespero vimos a água chegar à porta do casarão, construído por escravos, onde morávamos, geração após geração, e que era todo o orgulho de minha avó. Assim, de mansinho. Sem pedir licença. Foi levando tudo, todos os nossos sonhos e esperanças, a porta e o batente e toda a fachada frontal foi destruída e carregada pela água. Os pratos e as vasilhas onde comíamos, as compotas preparadas pelas mãos habilidosas de minha avó saíram também flutuando na água até desaparecer no viscoso lodo que se formou no fundo. Muitos dias se passaram até que as águas baixassem e que pudéssemos verificar o que havia sobrado de nossa casa. Minha avó chorava a um canto e dizia: "Tudo perdido! Tudo perdido!" Até o retrato de meu avô que estava pendurado na parede desapareceu. "Minhas lembranças", dizia a minha avó, "o que eu tenho agora pra me lembrar..." E chorou. Mesmo depois que, unidos, eu, meus tios, meus pais, reunimos dinheiro suficiente para reerguer o casarão, minha avó dizia que não era como antes. E chorava pelas flores plantadas pelo meu avô e pelas paredes que ele mandou caiar, as quais nunca mais seriam as mesmas...

Assim é o nosso amor, amor meu. Exatamente como a chuva que principia como uma leve garoa, começam os desentendimentos e as pequenas mágoas são como águas que se unem e viram uma imensa dor. Neste momento, todas as boas lembranças afundam e ficam presas no fundo lamacento de nossas almas. Até que não haja nada de bom a ser lembrado. Caem os rebocos e os marcos, até que daquilo que era não reste nada. Tudo perdido. Tudo em vão. Quisera eu não tivesse te dito aquela palavra que te magoou, que gerou entre nós uma guerra sem fim, que se seguiu com mágoa, vingança, revanche, mágoa, vingança, revanche. Tudo que começa um dia tem que ter um fim. E agora eu choro, como chorava minha avó pelas flores que meu avô plantou. Eu choro pelas cores, pelos desejos, pelas esperanças que não existem mais. Eu choro pelo fim. Ah, se nós pudéssemos parar essas águas, quando ainda era tempo...

Cacau Segobia
Enviado por Cacau Segobia em 14/04/2007
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