FLASHBACK

Sexta-feira, véspera de carnaval, e lá estava Rafael no vestiário da fábrica, se arrumando para ir para casa. Seu turno havia acabado, e agora só voltaria na Quarta-feira de Cinzas, após o meio-dia. Era trocar de roupa, e esperar pelo transporte da empresa que o levaria até o centro da cidade para, então, tomar outro ônibus. Sorte a sua que seria uns dos primeiros a irem embora, pois estava exausto e não via a hora de relaxar.

Rafael já estava na fila, aguardando sua vez de entrar no ônibus quando chegou Aníbal.

- Rafael, por favor, me quebra um galho. Minha mulher pediu para eu passar na Casa Turuna. Aquela, no centro da cidade, que vende artigos de carnaval. Ela fez uma listinha. É tudo para terminar as fantasias das crianças.

- Sim, e eu com isso? – perguntou Rafael.

- O meu ônibus é o terceiro. Se eu for nele, quando chegar lá, a loja estará fechada. Aí a mulher vai reclamar nos meus ouvidos, e as crianças vão armar um berreiro. Vai ser um inferno. Troca comigo, meu amigo.

- Está bem, mas só dessa vez.

- Obrigado, irmão, fico te devendo uma.

E assim foi Aníbal todo satisfeito no lugar do colega. Na verdade, Rafael não cedera porque era um bom samaritano, mas porque também tinha dois filhos e, como pai, não gostaria que Olga e Léo ficassem frustrados porque suas fantasias não tinham ficado prontas a tempo.

Meia hora mais tarde, Rafael embarcou. Sentou-se lá na frente, naquele banco de um só passageiro. Tratou de colocar sua mochila nos pés, e ficou aguardando ansioso até o motorista dar partida. A estrada que levava até à rua principal estava em péssima conservação – era cada buraco! A única coisa de bom é que o trepidar do veículo parecia embalar o sono dos funcionários. Bem que Rafael tentava manter suas pálpebras abertas, mas naquele dia, em particular, estava difícil. Ele lutou o quanto pode, mas o cansaço o derrotou. Caiu num sono profundo e não ouviu mais nada.

Às oito horas da noite Rafael chegou em casa. Ao entrar, estranhou o silêncio. As crianças não estavam na sala, vendo televisão. Foi até a cozinha, mas sua mulher também não estava lá, fazendo a janta. Quando passou pelo quarto da sogra, notou que a porta estava entreaberta. Como viu que a D. Carmela estava vestida, encontrava-se apenas recostada na cama, empurrou um pouquinho a porta para perguntar onde estavam todos. No entanto, ela continuou ali, olhando em sua direção. Foi então que Rafael notou que os lábios dela se mexiam. Ela estava rezando. Como ele não quis interromper suas preces, ele encostou a porta novamente. “Muito esquisito.” – pensou ele. “Custava ela dar uma paradinha em suas orações para dizer onde o pessoal estava? Ela deve estar ficando gagá. Deixa pra lá.”

Rafael foi para seu quarto. Sua filha estava dormindo no seu lado da cama de casal. Por que ela já estaria adormecida à esta hora? Por que não havia ido para seu quarto? Quando ele já estava saindo do aposento, viu quando Olga deu uma espécie de suspiro, virou-se para o outro lado, e continuou a dormir. O que estaria ela sonhando?

Não encontrando mais ninguém em casa, Rafael voltou à cozinha, pois estava morto de fome. Ficou frustrado quando viu que as panelas estavam vazias. ”Mas por que Sonia não cozinhou nada hoje de tarde?” – pensou. Ao entrar novamente na sala, viu a esposa. Ela devia ter acabado de chegar. Sentara-se no sofá e estava de olhos fechados. Parecia cansada e sem forças. Pelo visto, ela não havia feito barulho para não acordar Olga, mas onde estava Léo? Quando ele se preparava para tocar em seu braço, e perguntar o que estava acontecendo, o telefone tocou. Ela levantou-se, passou do seu lado, e atendeu a ligação.

Cada vez mais, Rafael ficava aturdido com tudo – nem sequer “boa noite” ela dissera! Sonia havia começado a falar quando eles ouviram Olga chamar lá do quarto:

- Mãe!

- Já vou. – disse Sonia. Tia, eu vou ter que desligar. Olga acordou. Tchau.

Sonia pôs o fone no gancho e começou a ir em direção ao quarto quando Rafael perguntou:

- Amor, o que está acontecendo?

Sonia nem sequer olhou para ele como também não respondeu. Ele foi atrás dela. Quando chegou lá dentro, viu as duas abraçadas. Sua menininha repetia, chorando:

- Eu quero o meu pai. Eu quero.

- Estou aqui, meu anjo. Demorei porque troquei de lugar com um colega, mas não precisa mais chorar. – disse Rafael.

Olga calou-se, e olhou para porta. Ela sentou-se no colo da mãe e falou:

- Pai, até que enfim você chegou!

Olga desceu da cama. O pai, então, abaixou-se para pegá-la no colo quando ouviu a voz rouca de Sonia dizer:

- Filha, seu pai está morto.

Suas palavras pareciam uma daquelas rajadas de vento forte que encapelam o mar, e jogam o barco de encontro às rochas. Ele baqueou. A impressão que tinha era que o tempo havia parado. Entretanto, algo lhe dizia que um flashback dos últimos acontecimentos iria começar a passar diante de seus olhos. Era como se ele estivesse numa sala de cinema, com sua vida sendo projetada em uma tela. Ele se viu sentado no assento, conhecido por “Jesus tá chamando”, quando numa curva fechada, numa rua de mão dupla, o motorista de um caminhão perdeu o controle do veículo. Ele atravessou a pista, e veio bater bem ali onde Rafael dormia. Embora o acidente tenha causado ferimentos em vários de seus colegas, só ele havia falecido.

Rafael parecia visualizar tudo num estado de torpor. Nesse meio tempo, sua filha olhava-o atônita enquanto sua mulher segurava os ombros de Olga. De repente, Rafael sentiu um perfume de flores que lhe era familiar. Viu um facho de luz aparecer em sua frente, e a imagem de sua mãe se apresentou. Ela lhe estendia as mãos.

- Venha, meu filho. Não tenha medo. É só uma passagem. Confie em mim.

Rafael estendeu as mãos, e lá se foram os dois para o outro plano.

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 15/09/2013
Reeditado em 12/08/2014
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