O RESGATE

Nadya Bardini, de origem libanesa, era uma mulher de fibra. Nunca se deixara abater, nem mesmo quando foi lesada na partilha dos bens após o divórcio. Continuou a trabalhar como professora, e passou a cuidar sozinha dos filhos. Yasmin, a primogênita, tinha acabado de passar no vestibular para medicina da UFRJ, e Benjamim estava no segundo grau. Nadya sentia-se orgulhosa dos filhos. Eles eram estudiosos, sensatos e nunca tinham se envolvido em encrencas.

O tempo passou, e logo Yasmin estava no terceiro ano da faculdade. Um dia, ao voltar para casa, foi abordada por um rapaz que vendia incenso na praça, em frente ao ponto de ônibus. Ela achou que ele devia pertencer a alguma seita oriental porque suas vestes eram de cor alaranjada, e usava sandálias nos pés. Além disso, seu cabelo era raspado, e só havia uma única mecha na parte de trás da cabeça. Yasmin não saberia explicar o motivo, mas em vez de agradecer e seguir adiante, ela resolveu parar e comprar. Enquanto pegava o dinheiro na bolsa, começaram a dialogar. O que poderia ser uma mera troca de palavras sobre incenso, se transformou em uma conversa que durou quase meia hora. Falaram um pouco sobre tudo, e sobre ela também, mas o que ela realmente fez, foi perguntar sobre a vida dele já que parecia ser bem interessante.

Nos dias que se seguiram, Yasmin sempre encontrava o rapaz na praça ao vir para casa. Como o nome dele em sânscrito era um tanto difícil de pronunciar, ele sugeriu que ela o chamasse de Ravi. Nesses encontros, o rapaz costumava narrar histórias, ou falava do poder da ioga. Yasmin achava tudo tão exótico que ficava ouvindo em silêncio a maior parte do tempo. Aos poucos, no entanto, ela foi se deixando encantar pelo jeito suave de Ravi, que parecia estar sempre em harmonia com o mundo. Começou a pensar nele noite e dia, e chegava até a contar as horas para vê-lo novamente. Depois, a ansiedade se apossou de Yasmin a tal ponto que ela passou a sair da aula antes de acabar, e finalmente, fez uma coisa que nunca ousara até então – matou aulas.

A princípio, Nadya não notou nada de estranho no comportamento da filha. Foi só quando ela deixou de comer qualquer tipo de carne, que a mãe percebeu que sua filha mudara. Dias depois, Yasmin cortou os ovos de sua dieta, e por fim, falou que não beberia mais café ou chá. Quando a mãe lhe perguntou a razão, Yasmin disse que fazia parte de uma pesquisa sobre desintoxicação que um de seus professores mandara fazer.

Um pouco depois, Nadya, já um tanto cismada, também reparou que as amigas de Yasmin não mais telefonavam ou apareciam em sua casa. Quando a mãe indagou sobre o sumiço das meninas, a filha respondeu que umas estavam namorando, outras estavam fazendo diferentes matérias, enfim, cada uma estava enrolada com sua própria vida.

Os finais de semana começaram, então, a causar certa preocupação em Nadya porque além de sua filha sair de manhã e só voltar à noite, ela não sabia com quem Yasmin andava. Um sábado, Nadya não conseguindo mais se controlar, perguntou como ia a vidinha dela. A filha lhe garantiu que não havia grandes novidades. Ela apenas estava saindo com um novo rapaz, porém achava que ainda era cedo para apresentá-lo. Nadya ficou quieta, afinal, sua filha sempre tivera juízo.

No domingo seguinte, ao andar pela praia, Nadya encontrou, por acaso, Raquel, uma das amigas de Yasmin. Após os cumprimentos, a moça perguntou:

- Tia, como vai a Yasmin?

- Como assim, Raquel? Você não a vê todo dia? - disse Nadya sentindo uma pressão no peito.

- Tia, a Yasmin não vai à aula há bastante tempo.

Nadya não conseguia entender o que estava se passando, pois todo dia Yasmin saía de casa com a mochila, na hora habitual, e voltava no horário de sempre. Por que ela estaria matando aula? Será que isso tinha a ver com o tal rapaz?

Apesar de assustada, Nadya queria compreender a situação, por isso pediu a Raquel que lhe contasse tudo o que sabia. A moça disse que Yasmin provavelmente ficaria reprovada por faltas. Também não entregara alguns trabalhos e teria perdido umas provas. Todos, professores e colegas, estavam surpresos com essa sua nova atitude - logo ela, que sempre fora tão responsável! Entretanto, a pior notícia ainda estava por vir. Raquel disse que uns amigos haviam visto Yasmin com um cara excêntrico – parecia um daqueles adeptos das seitas indianas, que costumavam tocar uma espécie de tambor enquanto cantavam. Nadya se recusava a acreditar que sua filha estava trocando amizades de anos, a faculdade, e uma possível carreira de sucesso para estar ao lado de um rapaz desse tipo. Ela virou-se para a moça e perguntou:

- Raquel, por que você não me procurou? Você frequenta a minha casa desde os doze anos, e você não me disse nada!

- Tia, eu estava em dúvida. Como eu não vi os dois juntos, eu fiquei com receio de falar uma coisa sem saber se era verdade ou não. Além do mais, quando liguei para Yasmin, para falar sobre as faltas, ela me disse que não tinha que me dar satisfação do que fazia ou deixava de fazer, pois já era maior de idade. Fiquei magoada. Nunca pensei que ela ia agir daquele jeito comigo. Desculpe se não telefonei, mas achei que não era mais da minha conta.

Nadya despediu-se e foi para casa pensando em tudo e todos. Lembrou-se inclusive do ex-marido. Quando ele soubesse que a filha abandonara os estudos, iria dizer que a culpa era dela - uma mãe relapsa. Ao entrar em seu apartamento, Nadya foi direto ao quarto da filha. Tinha que achar uma resposta para aquele comportamento inusitado, mas não sabia exatamente o que procurar. Temia encontrar algum tipo de droga, porém sabia que era melhor enfrentar a realidade do que fingir que nada estava acontecendo. Entretanto, em sua busca, só viu uns livros sobre ioga e sobre a cultura hindu.

Quando Yasmin entrou e deu de cara com a mãe, sentada em sua cama, lendo um dos livros de Ravi, não gostou nada. Ela começou a dizer que a mãe havia invadido seu espaço, e que ela deveria ter respeitado a sua privacidade. Yasmin falava bastante agitada, e de repente, começou a colocar umas mudas de roupa numa mochila. Sua mãe, contudo, procurava manter-se calma. Ela só queria entender e ajudar. Cheia de dedos, Nadya perguntou sobre o rapaz. Yasmin foi bastante evasiva. A única coisa que disse era que achara um novo caminho e estava disposta a tudo para segui-lo. Ao dizer isso, correu porta a fora e ao chegar ao corredor do andar, desceu as escadas do prédio rapidamente. Nadya tentou ir atrás, porém não conseguiu alcançar sua filha. Ela chorou o resto da tarde. Sentia-se sozinha e impotente, e não sabia a quem recorrer. Quando se acalmou um pouco, telefonou para Benjamim, que estava na casa da avó. Quem sabe ele poderia esclarecer algo sobre a irmã? Infelizmente, ele não tinha nenhuma informação a não ser que a vira, uma vez, meditando em posição de ioga.

Yasmin afastou-se da família assim como fizera com as amigas. Sumiu no mundo, não atendia celular, não dava notícias. Nadya procurou todos os que conheciam sua filha para ver se descobria seu paradeiro, mas sua cruzada foi em vão. Com o tempo, entretanto, Nadya achou um grupo de pais que já tinha passado pela mesma situação que ela estava vivendo. Alguns tinham conseguido resgatar seus filhos, outros ainda estavam esperançosos, mas também tinha aqueles que haviam perdido contato de vez. Da conversa com esses pais, ela notou pontos em comum entre as várias histórias. Normalmente os filhos eram logo afastados do convívio familiar, moravam em comunidades isoladas, acordavam muito cedo e tinham que estar presentes aos cultos. Costumavam se alimentar exclusivamente de verduras e frutas, e além de meditarem, trabalhavam na lavoura. À noite, estavam tão cansados que dormiam profundamente para dali a algumas horas, começarem tudo de novo. Um dos pais lhe deu um livro sobre técnicas de persuasão. Ela ficou surpresa ao ler que o jejum, o incenso, os cânticos e tudo mais, eram formas já estudadas de induzir, nos jovens, uma nova programação mental, onde suas ideias antigas seriam substituídas por outras. Nadya também aprendeu que esse tipo de treinamento era usado por alguns exércitos, só que em vez de incutir conceitos religiosos, o objetivo era defender a pátria a qualquer custo. Quanto mais ela procurava informações, mais se assustava, principalmente quando constatou que, para alguns pesquisadores, aquele método era mais do que simples persuasão - era um tipo de lavagem cerebral. Diante do impacto dessa possibilidade, ela se perguntava como poderia salvar sua filha. Afinal, ela era apenas uma mãe angustiada e saudosa.

Embora Nadya não se sentisse à vontade com o ex-marido, ela achou que era sua obrigação informá-lo do que estava acontecendo, mas a reação dele não a surpreendeu. Ele disse que a filha tinha mais de vinte anos, e deveria saber o que estava fazendo, porém se um dia precisasse de sua ajuda, saberia onde encontrá-lo. Como Salim não ofereceu nenhum tipo de consolo, Nadya acabou procurando o auxílio de uma psicóloga para orientá-la neste momento difícil.

Um domingo, Nadya estava em casa lendo quando uma colega de Yasmin telefonou. Ela passara de ônibus pela praça da “Feira Hippie” em Ipanema e vira uma moça, de sari, que parecia ser Yasmin. Nadya agradeceu, pegou sua bolsa e saiu. Ainda bem que morava pertinho, mas tinha medo de que a garota fosse embora antes dela chegar. No caminho, Nadya foi se lembrando das palavras da psicóloga. Ela deveria agir com muita calma porque se forçasse um reencontro, poderia perder sua filha de vez.

Nadya custou a localizar a tal moça porque a praça estava cheia - era dia da feira de artesanato. Quando a viu de longe, postou-se atrás de uma árvore e esperou. Após uns dez minutos a garota, que estava de costas, virou-se. Era Yasmin, mas estava tão diferente! Havia emagrecido bastante, e tinha uma aparência cansada. Ela que sempre fora vaidosa com o cabelo, as unhas, vestia-se com simplicidade, e seus pés estavam sujos. A impressão que dava era que havia envelhecido anos em poucos meses. Apesar da vontade louca de correr e abraçar a filha, Nadya continuou escondida, com as lágrimas a descer pelo seu rosto.

Por muitos domingos consecutivos, Nadya fez a mesma coisa até que um dia deixou-se ver por Yasmin. Ficou parada, olhando para sua menina com seu melhor sorriso. Sua filha simplesmente deu as costas e foi embora. Nadya ficou a semana inteira se perguntando se tudo tinha ido por água abaixo.

No domingo seguinte, para alívio da mãe, Yasmin apareceu, mas ela não se aproximou de Nadya. Yasmin ficou na praça, vendendo incenso por um tempo. Quando Nadya reparou que ela estava prestes a ir embora, aproveitou que sua filha olhou para ela por alguns instantes, e fez, no ar, o desenho de um coração com as mãos. O mesmo gesto foi repetido por vários domingos, afinal, era desse jeito que Nadya tentava demonstrar o quanto sua filha era querida. Segundo a psicóloga, o caminho para trazer Yasmin de volta exigia paciência, cautela e muito amor.

Numa terça-feira, Benjamin chegou em casa com uma novidade. Yasmin havia ligado, dizendo que estava bem, mas pedira que ele desse um aviso para a mãe. Ela deveria tomar cuidado, e da próxima vez que as duas se vissem, a mãe deveria se aproximar, com o pretexto de comprar incenso. No entanto, não deveria tocá-la ou fazer qualquer gesto de carinho. Deveriam agir como estranhas. Ao ouvir o recado, Nadya não sabia se ficava feliz ou não. Por um lado sua filha havia feito contato após quase um ano, por outro, ficava aflita. Por que ela dissera para tomar cuidado?

No outro domingo, lá estava Nadya, pedindo coragem a Deus para não desabar diante da filha. Ela tinha medo que sua menina estivesse correndo algum tipo de perigo. Quando viu Yasmin, Nadya aproximou-se, comprou o incenso e conversou banalidades, mas muito rapidamente. Quando estava para ir embora, ouviu Yasmin dizer em voz baixa:

- Estou cansada, mãe. Quero sair, me ajude.

- Vamos agora para casa. – disse Nadya.

- Não posso, estou sendo vigiada. Eles já estão desconfiados de que mudei.

Enquanto falavam, Yasmin parecia procurar algo em sua bolsa de pano. Então, ao retirar um livro lá de dentro, ela falou num tom mais alto:

- Esse livro é muito interessante. Creio que vai gostar.

A mãe entendeu a mensagem. Pagou, e foi para casa. Ao folhear o livro, Nadya achou um bilhete. Nele Yasmin dizia que tinha que fugir para fora do país, do contrário, seria levada para uma comunidade ainda mais distante. Ela avisava a mãe que, na próxima sexta-feira estaria na Tijuca, na praça em que havia se apresentado, cantando músicas de Natal com os colegas da escola. Havia um shopping ali perto, e ela iria inventar que precisava ir ao toalete. Estaria no banheiro do térreo às dez e trinta. A mãe deveria encontrá-la ali. Depois, sairiam do banheiro e se dirigiriam para a saída oposta, aquela perto da confeitaria, onde costumavam comprar bombas de chocolate.

A partir dessas informações, Nadya precisava pensar num esquema para tirar Yasmin do Brasil. O primeiro passo foi checar os passaportes. Ainda bem que os dois estavam válidos, assim como os vistos para os Estados Unidos. Depois, comprou as passagens e os dólares, e fez as malas. Mais tarde, entrou em contato com as amigas de Yasmin, e explicou sua estratégia. Por último, alugou um carro com motorista.

Na sexta-feira, Yasmin estava no shopping na hora H. Ela já havia avisado ao rapaz que estava vigiando-a, que poderia demorar um pouquinho, por isso ele não suspeitou de nada quando viu o que parecia ser uma fila que vinha até a porta do banheiro. O que ele não sabia era que tudo fazia parte do plano. Tão logo Yasmin conseguiu entrar, sua mãe lhe deu a roupa para trocar. Nadya havia providenciado jeans, blusa, óculos escuros, enfim, tudo que sua filha precisava para passar por uma garota de sua idade. Tinha até uma peruca loura. Enquanto ela mudava de roupa, outras moças entravam e saíam sozinhas, em pares ou em grupos. Ao deixar o banheiro, cercada por várias garotas, Yasmin estava irreconhecível. Sua mãe, que também estava disfarçada, andava na frente, como que mostrando o caminho. Ao se afastarem do shopping, entraram no carro que as esperava e foram direto para o Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Só quando o avião decolou às treze horas, é que mãe e filha puderam relaxar – o resgate fora um sucesso!

NOTA:

Esta é uma obra de ficção baseada em fatos reais. No entanto, para preservar a identidade dos envolvidos, seus nomes, detalhes e locais foram trocados. A boa notícia é que, hoje em dia, Yasmin está bem. Formou-se em enfermagem nos Estados Unidos, casou-se e tem dois filhos.

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 13/09/2013
Reeditado em 14/09/2015
Código do texto: T4479583
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