A hora da morte
Não sabia há quanto tempo estava ali. O tempo perdera a razão de ser. A cada segundo que passava, sentia-se mais próximo do destino que o rondava há meses. A morte, tão conhecida como a única certeza da vida, era a mãe de todas as incertezas. Questionamentos. Medos. Ansiedade. A dona da mão que toca as feridas mais profundas e irremediáveis da alma.
Vira em filmes que a morte, aquela visitante indesejada, não causava dor. Era libertação. Era o fim de um tormento indesejado, de dores intensas, de más escolhas, caminhos tortos e temores. Sempre soubera que todos estavam destinados a ela. Era algo que vivia sobre nossas cabeças, mas nunca nos pensamentos.
Já havia visto a figura sombria jogar seu negro manto sobre outras tantas vidas, mas não pensou, em nenhum momento de sua breve existência, que ela o cobriria com a escuridão e tomaria a sua lucidez tão rapidamente. Ainda tinha coisas para fazer. Era errado que ela chegasse repentinamente e o levasse para outros cantos. Existiam outros cantos? Iria para canto nenhum enquanto seu corpo se degradava lentamente?
Enquanto sentia os fracos batimentos de seu coração, ele pensou nos outros. Os tantos outros que conheceu, com quem viveu. Lembrou-se daqueles por quem teve grande afeto. Pensou nos amores nunca declarados. Reconheceu, dentro de si, a figura de um covarde que se abatera diante de seu medo. Lamentou cada segundo jogado fora com a banalidade que cerca a vida. Esqueceu-se de dizer tantas palavras e sabia, agora, que elas eram impronunciáveis. Todos os amores, fortes e fracos, morreriam em breve, na quietude da eternidade e de sílabas lançadas, em vão, ao vento.
Quantos chorariam a sua ausência? Quantos lamentariam a sua falta na mesa do bar, no domingo à noite, durante uma conversa sobre os percalços da vida? Quantas lágrimas sinceras seriam derramadas ao redor de seu corpo frio? Ele partiria cercado de amor verdadeiro? Deixaria lembranças boas nos corações de quem amou? Quantos choros nasceriam do remorso? Remorso por ter dito algo errado na hora imprópria. Ou por ter calado diante da necessidade aguda de palavras, toques, gestos e carinhos.
Era a incerteza da vida que angustiava a certeza da morte. Necessitava de mais tempo. Quem não precisa? Se pudesse retornar ao passado, teria levado flores para Catarina e diria que, sim, queria passar o resto de sua vida ao lado dela. Mostraria a sua mãe uma carta que fez, na infância, durante uma briga dos dois. No texto, ainda escrito com letras ininteligíveis, falava sobre todo o amor que tinha por aquela grande mulher e o medo de perdê-la. Jogaria bola novamente com seu pai e, ao invés de se aborrecer por ter sido goleado, abraçaria-o para comemorar a vitória do seu melhor amigo.
Se voltasse, diria a Lucas, seu amigo de adolescência, que precisava do seu perdão. Repetiria, dessa vez em voz alta, que havia sido tolo ao desconfiar de cada palavra e da tristeza em seus olhos. Saberia valorizar os momentos de carinho com Luísa, sua irmã mais nova, e não a chamaria de enjoada como costumava fazer. Lembrava-se de que deveria ter dito o quão linda é e o quanto a amava.
Todos, agora, estavam sozinhos, envoltos no silêncio das palavras nunca ditas por ele. Sentiam-se ainda mais carentes do afeto nunca dado. Ficavam questionando em quais momentos haviam errado. Tentavam explicar o inexplicável. Desejavam ter feito mais por ele.“Deveríamos tê-lo abraçado mais vezes. Deveríamos ter falado sobre o orgulho que tínhamos desse garoto de olhos azuis que a morte nos tomará.”
Os deveres faziam parte do passado. O futuro traz o medo do desconhecido e a garantia de que nada mais poderá ser feito. Ele não mais dirá as palavras entaladas em sua garganta. E ninguém mais estenderá a mão para ajudá-lo a atravessar as ruas escuras e enfrentar seus fantasmas.
No leito da certeza, todas as incertezas foram lançadas à escuridão.