Delírio

DELÍRIO

Estou em pleno êxtase às margens do rio dos sonhos, este serpenteia o pé da montanha ferindo a rocha provocando fendas assustadoras. Dezena de fios de prata escorrem do alto do penhasco formando uma franja que ao brilho do sol se decompõem em cores, misturadas se matizam e pulverizadas pela vertiginosa altura se transformam numa névoa fina que molha meus cabelos. Encontro­me deitado caído sobre uma pedra lisa e escorregadia, bastante inclinada em direção às águas. Estas parecem enlouquecidas numa correria desenfreada, desesperada como se fugindo de um perseguidor implacável que as empurra em direção ao abismo. Cegamente despencam e urram ao chocarem lá no fundo contra o granito limoso. Percebo que não posso me mexer, pois se o fizer despenco na torrente avassaladora, estou grudado à pedra preso como se tivesse ventosas. Como aqui vim parar não me lembro, aliás, não me lembro de nada ocorrido recentemente só sei que não posso me mexer, apenas posso virar minha cabeça de um lado para o outro e de cima para baixo. Busco na memória algum tipo de punição semelhante já ocorrida com alguém. Lembro dos castigos sofridos pelos Titãs, Atlas e Prometeu. Até o suplício de Áquila passa pela minha cabeça, mas nada parecido com o que está acontecendo comigo vem à minha mente.

Olho para o horizonte que está apenas a algumas centenas de metro, algo se move e vejo para meu espanto que de pé sobre um rochedo paira um menino. Pela sua imponência certamente reina sobre esse pesadelo. Consigo ver sua altivez. Mantém a cabeça levantada e como estou deitado, noto de baixo para cima suas feições que por esse ângulo ficam distorcidas. Seu nariz adunco combina com o resto do rosto que pode ser considerado bem feito apesar das narinas grandes demais. Lembra uma estátua grega fixada a um bloco de mármore, sua boca é desenhada e seus lábios parecem ter sido contornados, é uma mistura de renascentista com o Barroco. Seus cabelos são negros e encaracolados, nos pés nada calça, veste uma toga de tecido branco amarrado pela cintura por uma cadeia de pedras coloridas. Olha em todas as direções com uma das mãos sobre os olhos, como quem quisesse olhar para o infinito e a claridade estivesse atrapalhando. Após girar uns cento e oitenta graus, para e fixa o olhar em uma só direção. Concluo que localiza o que procura. Tento verificar o que estaria vendo, mas nada percebo. Carrega uma sacola que lhe tomba o ombro esquerdo. Retira a mão que estava sobre os olhos e com ela puxa de dentro da saca algo parecido com uma flâmula. Notei que escolhera o que lhe interessava naquele momento, não consigo ver o que representa nem se há algo escrito, eleva para a altura da testa a pequena bandeira e nesse momento consigo ler a palavra DESATINO.

Ergo a cabeça e olho para o céu. Está quase negro. As nuvens rodopiam formando espirais que se entrelaçam e desse movimento frenético surgem figuras aterradoras como gárgoras de garras afiadas que voam em minha direção. O pavor de ser agarrado pelas horrendas figuras faz­me colar mais ainda de encontro à pedra dando­me a impressão de que se por acaso daqui sair, certamente meu corpo ficara estampado nela.

De repente, sem mais nem menos, todos os sons da natureza se fazem ouvir com o máximo de intensidade. Nunca havia percebido a infinidade de ruídos que existem em torno de nós. Um barulho ensurdecedor rompe­me os tímpanos, penso que vou enlouquecer. Sinto algo morno escorrer pelos meus ouvidos, suponho que sangram e parece que até isso me alivia.

Para tentar descansar fecho por alguns momentos os olhos e quando os abro novamente, vejo uma enorme sombra que cobre todo o vale invadindo a depressão com rolos de fumaça negra, sopradas por dragões enfurecidos. Além do barulho infernal tudo escurece e começo a ficar sufocado. A escuridão trás a tona uma fobia antiga, remanescente dos tempos de criança. Lembro­me da minha mãe e do seu conselho. Espante a escuridão dizia ela. Passo então a pensar em luz. Imagino uma caverna toda iluminada, com milhares de velas acesas refletidas nos estalactites que descem do teto aumentado ainda mais a claridade. Não é fácil, pois milhares de figuras demoníacas, tal qual as saídas da caixa de Pandora, invadem­me o cérebro e tudo fazem para que me desconcentre e deixe de pensar na luz. Vejo claramente que sopram e apagam as velas acesas pela minha imaginação. Quando não há mais força para resistir, já quase cedendo, eu que nunca acreditei em nada, penso num Cristo resplandecente. Assim que essa figura mansa brota em meu cérebro, um jato de luz expulsa imediatamente todas as figuras diabólicas que me atormentam. Consigo então com a força da mente, dominar a sensação de sufocação.

Como por uma ordem severa, instantaneamente o silêncio absoluto passa a dominar. Nada se ouve. As águas se calam, as aves se emudecem, o vento que se esfregava nas pedras não mais geme. Não há mais ruído algum. Isso dura pouco, pois logo a seguir começo a ouvir um som cadenciado como as batidas de um tambor. Vem aumentando, aproximado­se. Fico aterrorizado porque percebo que essas batidas são do meu próprio coração. Um som que vem de dentro, que nem sei se escuto ou se apenas sinto. Mas para aumentar ainda mais o meu pavor, noto que aos poucos a cada batida aquele suposto som aumenta assustadoramente. E aumenta de tal forma que certamente o coração explodirá se nada de novo acontecer. Mas algo acontece. Minha respiração passa a se fazer mais lentamente que o normal. E cada vez mais devagar, como numa tortura como se meu corpo quisesse me livrar desse suplício me matando por asfixia para terminar com o meu tormento. Então, paro de respirar por completo, sinto que vou morrer, pois não suporto mais os gritos do meu coração, nem a falta de ar em meus pulmões. Mas por mais incrível que possa parecer não morro, ou quem sabe já morri? Esse pensamento começa a dominar­me. Acho que estou morto e pagando meus pecados nas profundezas do inferno, só pode ser isso. Mas que bom seria se isso fosse verdade...

Do negrume das sombras, do barulho infernal, do silêncio mortal, passo à claridade absoluta, que se faz em segundos, no mesmo instante. Agora tudo está aparentemente como antes. Minha respiração volta ao normal, meu coração silencia. Somente a névoa que encharca e gela meu corpo faz­me mal. Eu grudado à pedra agora coberta por uma camada gelatinosa espero o momento em que de lá despencarei. A claridade fere meus olhos, mal posso mantê­los abertos. Há uma luz intensa, mas não há sol. Um brilho ainda mais forte como um diamante ao sol, ofusca mais ainda meus olhos.Tento fixar o olhar naquela direção apesar do brilho intenso. Nesse momento, uma névoa desavisada funciona como um filtro e consigo ver a figura daquele menino extremamente brilhante. Só que dessa vez me pareceu bem mais velho. Aponta para um rochedo onde se lê a palavra ESTUPOR.

O fulgor da imensa claridade queima meus olhos, mas é uma queimadura fria que incendeia todo o meu globo ocular. Com os olhos em brasa a arder não consigo abri­los e os mantenho fechados por algum tempo. Sinto a necessidade de mantê­los abertos, pois isso me dá certeza de estar vivo.Começo a lacrimejar e sinto uma sensação de alívio, não mais doem minhas vistas. Abro lentamente as pálpebras que estão coladas e vejo que choro sangue, que tudo sangra. Do alto do penhasco filetes sangrentos escorrem. A névoa fina é vermelha e as águas impetuosas do rio estão escarlates, brilhantes. Começa a chover, apesar de não haver nuvens no céu. Na verdade não vejo o céu, a claridade não deixa só vejo um manto vermelho que tudo cobre, variando apenas de tonalidade. A chuva eu percebo, é branca ao cair, mas ao tocar no solo e ao meu corpo avermelha­se, escorrendo não mais como água , mas como vermes miúdos, que se contorcem e pulam como se estivessem sobre uma chapa quente. Sou obrigado a não mais descansar a cabeça sobre o rochedo, tenho nojo dos vermes que pulam sobre minha boca. Sei que meu pescoço não agüentará esta posição por muito tempo, mas mesmo assim ficarei o máximo possível. Por fim, não resisto e minha cabeça tomba sobre o rochedo fervilhante. Mantenho a boca fechada, mas de nada adianta, pois as larvas nojentas passam a entrar pelas minhas narinas e até mesmo pelos meus ouvidos. Sinto que entram aos milhares e que já me dominam internamente. Contorcendo­me em dores, com ânsia de vômitos, sem poder mexer­me, nada mais posso esperar a não ser um suplício ainda maior. Aquilo que agora está dentro de mim, resolve sair a qualquer custo. Todo meu corpo lateja, principalmente as veias dos meus braços, que se estufam e afloram.

Minha posição sobre a rocha é como se estivesse crucificado, braços abertos para ter melhor estabilidade. Esta posição facilita aos vermes a saída forçada pelos vasos que estão esticados. Finalmente se rompem e um jorro, não de vermes mas de uma substância esbranquiçada, nojenta, pútrida, explode e começo a esvair­me. Sinto, é o fim. Como num passe de mágica, inexplicavelmente desaparece todo esse tormento. Apenas percebo que escorreguei alguns centímetros em direção às águas assustadoras. Tento descansar enquanto nenhum novo martírio se apresenta e questiono o porquê de tudo isso. Por que estarei passando por essa provação?

Agora começo a ver meus pais ao longe. Não sei se os vejo ou estão em minha mente. Tem sobre os ombros fardos muito pesados, que lhe curvam todo o corpo. Não sei o que transportam e que tanto lhes faz sofrer. Percebo apenas, pois desde criança conheço como são seus jeitos.Caminham sobre pedras brancas. Algumas pontiagudas outras lisas e escorregadias. As que têm pontas, ao serem pisadas transformam­se em pó, deixando para trás um rastro de poeira branca e fina. Todo meu corpo estremece, pois percebo que esta poeira chegará a mim. Não sei por qual razão por que tanto pavor de ser envolvido por esse pó. As outras sem arestas, além de escorregadias afundam com o peso do corpo, cada vez mais a cada passada. Tudo isso dificulta muito o caminhar. Não entendo por que não caminham juntos. Andam em direções opostas, como se quisessem buscar algo muito distante, na certeza de que esse algo jamais será encontrado. A estrada não tem princípio nem fim, apenas um ponto em cada extremidade. Em ambos os lados nada existe, nem mesmo as margens se vê. Noto a lentidão do caminhar, parecem cansados e ainda falta muito para chegarem ao final do caminho.

Acho que perdi os sentidos e fiquei muito tempo desmaiado, porque agora já os vejo quase no final da estrada. Sinto uma tristeza imensa em vê­los indo embora e não resisto às lágrimas que jorram em quantidade. Porém algo os avisou que sofro e que estou chorando, talvez algum sentido que só os pais possuem, pois levantam a cabeça no mesmo instante e resolvem voltar antes de chegarem ao final. Voltam correndo como loucos tropeçando caindo. Chego a crer que virão ao meu encontro para livra­me desse martírio, mas continuam correndo até que se encontram num determinado ponto. Passam então a correr juntos para uma nova direção, correm para o infinito. Noto por trás deles, perseguindo­os figuras amorfas e assustadoras. Sinto que já perceberam que estão sendo perseguidos e resolvem enfrentar valentemente os monstros sem forma. É uma luta quase perdida, mas no ardor da batalha acabam por se abraçarem, tentando um proteger o outro. Nesse momento, o que os perseguia desaparece e vejo surgir novamente, entre a nuvem e o pó, o tal menino que não é mais um jovem. Está inteiramente deformado e envelhecido. Só o reconheço pela sua postura. Do seu peito jorra um facho de luz, que projetado na poeira escreve a palavra CONCIÊNCIA.

Meu braço esquerdo descola­se da pedra. Posso mexê­lo livremente, o que por um lado agrada­me por outro me enche de pavor. Sinto que assim como esse membro, todo meu corpo se desprenderá por inteiro a qualquer momento. Olho para meu braço e para o lugar de onde se desprendeu. Não havia notado, mas a substância gelatinosa que passou a cobrir a rocha deve ter poderes anestésicos e corrosivos, pois a parte inferior do braço que estava grudada junto à pedra, havia se desmanchado e muita substância fina tinha ficado colada a ela. Imagino que isso ocorrerá com todo meu corpo. Quando despencar, um terço dele ficará colado ao rochedo e ao chegar até a torrente que me apavora, certamente já estarei morto. Aparecem agora milhares de insetos famintos, atraídos pelos restos da matéria já apodrecida que ficou presa. Perseguem esvoaçando e subindo pelo meu corpo, meu pobre braço carcomido dilacerado... Não posso fazer movimentos bruscos para espanta­los, pois temo cair. As ferroadas são extremamente doloridas, insetos maiores esticam as veias e tendões tentando arrancá­los. É muita dor, não consigo ficar sem mexer. Estremeço e começo a escorregar. Olho para onde estava grudado e vejo parte do meu corpo ficando lá. Nesse momento, percebo quatro figuras brancas tentando segurar­me. E aquele menino aparece sorrindo, trazendo a pequena flâmula onde se lê ESPERANÇA. É tarde de mais é o fim meu Deus.

Segure o paciente ele está caindo da maca!

­ Ele morre doutor?

­ Dessa vez escapa, não chegou a ser uma OVERDOSE.

zoric
Enviado por zoric em 10/04/2007
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