O homem dos peixes



Sentia raiva e inconformação por até aquela altura da vida, não soube responder a uma pergunta que lhe fizera um amigo; - não sei; não sei se amei, não sei quem foi o meu verdadeiro amor.
Sim, porque qualquer pessoa teve ,tem ou terá o “seu amor”. O amor amigo, daqueles que abraça quente, abre-se em espaço para caber o outro, recebe fervorosamente cada suspiro a umidade de uma lágrima como se fosse um presente; esse amigo sempre ouvia o que seu amor diz e nunca o criticou nem descompreendeu, nem mostrou-se aturdido ou inconformado com a resposta dela:
Não sei, infelizmente não sei. Nunca  o amigo perguntou se ela sabia a razão, ou se talvez, houvesse um bloqueio que a amarrava emocionalmente e a amordaçava, para que ela não dissesse o que grande numero de seus poucos amigos quisessem saber. E isto, este fato a perscrutava tão forte lá dentro como garfo, parafuso, serrote, guincho, qualquer artefato que servisse para puxar das profundezas o que teria, devia, era preciso sair.
...
Ela amou , e muito; teria ela se dado tanto quanto o ser amado não poderia receber? quem sabe suas emoções, razão, zona de conforto, "status quo" misturaram-se em uma conferência interior para que ela jamais respondesse a essa pergunta... Muita dureza, bastante covardia, excesso de baixa estima, personalidade de pura rebeldia, algozes saídos de escombros de celas onde a maldade residia; a mentira era a rainha, fracos, covardes, ou superalterestimados, egoisticamente falidos ou encarcerados por elefantíase egóica? Nada, nenhuma resposta; simplesmente ela não sabia aonde, em que espaço oco e inútil do seu ser a resposta se encontrava. Fechou-se.
Todos sabiam e ninguém mais tocava no assunto proibitivo, proibido e proibidor. Como amigos, fizeram no ar, invisivelmente, um pacto: - Ela é do bem, é nossa, faz parte de nosso caminho, é verdadeira, transparente, se não sabe, não sabe. Mãos juntas e um grito AH! . Estrelas testemunharam. Ela não, Mas foi bom. Talvez não aguentasse.
A vida correu tranqüila, até que um dia, muito tempo depois de juras, decretos feitos à luz da lua, promessas a si mesma, pacto com seu Comandante, (o coração - como ela o chama em seu primeiro livro), sonhos analisados, terapia psicoemocional, ela pensou: Para! quero, vou descer e pegar outro transporte! Não fez nada disto, Não deu tempo, O Universo não quis.
Conheceu assim, num clik!  um ser suave, sincero, solícito, surpreendente, sensítico, solidário, sinestésico, sinfônico, sonhador e sedutor. O homem dos dez “S”. E ela tremeu, brilhou, brotou do asfalto, virou flor, banhou-se no rio, escorreu-se e discorreu-se inteira, Nenhum dos dois conversavam sobre nada ,além do que estavam sentindo ali, naquele momento, e anos depois. Tudo era explosão fogosa, coloridos meu bem, amorosos minha mulher, minha Flor, gostosos mar da minha vida. Sentimentos e emoções de verdade. E bastava. Poucas perguntas ele fazia e recebia respostas de todas. Ela não gostava de perguntar e a única que fazia em nenhum instante presente, passado ou futuro, recebia resposta. E nem percebia
(ou não quis perceber).
Uma vez ele lhe disse que era pescador, na lida com o mar, em barcos coloridos e alegres e voltava com amigos, tarde da noite; puxava rede, escolhia peixes, levava-os para o mercado.
A vida sorrateira e de comum acordo com ele (porque às vezes ela prefere fazer chorar a fazer rir) foi mudando, mudando e o sofrimento foi tanto e tamanho que ela passou a ter vergonha de sabe-se lá o quê. 
E acabou-se o que tão doce foi (ou nunca tenha sido) Quando se ama nada é amargo, nem torto, nem feio, nem invasivo, nem desrespeitoso.
Bilhões de anos foram vividos e milhões de noites e dias embelezados até que... Em uma tarde morna e fresca, em seu refúgio habitual, bem acomodada na rede ela lia, talvez pela terceira ou quarta vez, Crime e Castigo. A sua manta preferida, colorida em vários tons pastéis de diferentes cores e entremeada por rendas, cobria suas pernas vestidas por uma bermuda de linho.

Um automóvel de antigo fabricante, mas bem conservado, para na estrada estreita, ladeada de pequenos botões lilazes e capim, brincadeira para o vento, que teimava em sacudi-los. Ele desce do carro devagar; olha de forma comovente aquele mar verde que balança como ondas ao sabor do vento, subindo e descendo... distraidamente, solta os braços e deixa que seus dedos toquem com a mesma suavidade do balanço do capim, aquelas ondas, como tocava, em sonhos ,s cabelos dela.. Ela não está olhando para ele, mas a estória o viu assim, como ela quase sempre o “via” em sua imaginação: Suave e sensível.

Ele acorda daquela satisfação, dá mais alguns passos; abre o baixo portão de madeira, passando por cima o braço e puxando o ferrolho. Atravessa o espaço gramado e com grandes pedras arredondadas, amareladas como sua roupa bege claro, leve, solta, de tecido propositadamente enrugado, fazendo um passeio até a varanda.

Aproxima-se cautelosamente e, com voz trêmula, diz:
- Interrompo?
- Quem é você? Pergunta Clara, fechando o livro e olhando aquele rosto tão amado, tão distante..
- Não lembra? Sou “o homem dos peixes”
- Ah! Lembro sim... E o que faz aqui?
- Vim apenas para saber de ti algo que me rouba a paz e a tranqüilidade: ainda me amas?
Ela segura suas mãos finas de quem nunca pescaram e, pausadamente, responde:
- "água e azeite não se misturam; nem mesmo quando a profundidade do oceano termina e só há a quietude dos seres que repousam nas locas, a areia dormindo e o silêncio nunca escutado.”
Ela a olha de novo e vê seus olhos disformes como os dos peixes, que muitas vezes são ovais, redondos, estreitos, enormes, pequetitos... Ele relanceia o olhar nela por inteiro, do cabelo aos pés nus na grama, Ela espera uma palavra que poderia ser dita. Ele buscou uma que se adequasse e não encontrou, talvez por nunca ter dito uma certinha, em um momento inquieto, de tão ansioso e necessitado que era...
A tarde se foi, o sol avermelhou-se como uma amora gigante, quase cor de vinho. Parece que todo o planeta fez um apelo colorido para os dois, A estória diz que ela enxergou até o minério escondido em uma gruta que brilhava como os olhos dele quando, raramente,  dizia uma verdade.
Os dias seguintes nunca mais foram ou serão os mesmos. O noticiário das cinco deu uma notícia banal, natural, mas doída: "casal de namorados separa-se. A previsão dos próximos anos é de que as cores desta tarde não mais se repetirão ( pelo menos neste planeta). Boa noite a todos e amem, porque o amor governa o mundo!"
Ele ainda oculta o que deve ser revelado ; ela revela o que não pode ocultar: azeite e água.


Tela de:Barbara Jaskiewicz