Terra que Ninguém Sabe Pisar
Quem poderá conhecer a natureza humana? O coração do homem é uma terra que ninguém sabe pisar. Olhe a história do Neco, caboclo morador nas cauãs, nome de uma grotinha, que descia do pé da serra para a vereda do meio. Vivia na possezinha que havia comprado ali, cuidando de um gadinho pego na meia. Era sozinho naquele lugar meio longe dos outros. Um dia arranjou um casamento com a Ana, que morava no Bagre. Era mãe solteira e acabou por tirar a sorte grande. Mulheres nessa condição não costumavam arrumar casamento naquela época. Assim, foram vivendo o trivial da vida naquele lugarzinho. Com o tempo, a Lurdinha, esse era o nome da filha da Ana, começou a tomar corpo e o Neco passou a desejá-la. Com agrados e cercos, numa tarde em que a mãe saiu para visitar uma parenta no Pau D’arco, ele a possuiu. Dessa forma, o caboclo ia ficando com as duas, mãe e filha. A Ana se percebeu alguma coisa, nunca abriu a boca. Mas, como o salário do pecado é a morte, as coisas começaram a mudar quando, numa festa de São João, a Lurdinha começou a se engraçar do Vito. Esse era filho de uns baianos que haviam chegado há muito tempo nas terras do Urucuia. Como trabalhavam muito, já haviam dobrado tudo que tinham no começo. O rapaz era a menina dos olhos do velho patriarca, que havia deixado a seca do sertão baiano e, num Vapor, subiu o rio São Francisco até o São Romão, para procurar melhora de vida para sua família. O Vito era o filho caçula, dos nove que tinha, havia nascido no Urucuia. O rapaz era inteligente e tinha concluído o ginásio em Januária, o primeiro na família a terminar os estudos, naturalmente, iria assumir os negócios da família quando chegasse à hora. O Neco viu tudo e não gostou nada. O ciúme lhe queimava a garganta. Mastigou, mastigou e não engoliu. Ficou ruminando ódio. Quando o Vito começou a aparecer nas cauãs para cortejar a moça, fingiu concordar com tudo e até tratou bem o moço. Um dia ele ficou espiando quando os dois se despediam na cancelinha. Eles se beijaram. O Neco teve vontades de ir até lá e matar o rapaz com as próprias mãos. Começou a vigiá-los. Quando o Vito aparecia, ele fingia amizade ao rapaz, mas, a verdade é que não conseguia olhá-lo nos olhos. Tudo piorou numa certa noite. Quando a Ana dormiu, ele saiu do leito e foi até o quarto da Lurdinha e ela não quis recebê-lo na cama. Voltou humilhado ao catre. Aquilo não podia continuar. Decidiu que iria matar o Vito.
Num sábado, o Vito apareceu para ver a moça e comentou que iria ao São Romão comprar uma carga de sal para o pai nos próximos dias. O Neco viu ali uma boa oportunidade para levar a cabo suas más intenções e pediu ao moço que viesse a sua casa no dia anterior a viagem para conversarem a respeito de umas encomendas. No dia combinado, o Neco levantou-se bem cedo, arriou três cavalos, carregou a polveira, pegou uma foice e foi para a beira do curral, o dia ainda estava clareando. O dia ia amanhecendo e o Neco roçando o mata-pasto, a espingarda escorada na cerca do curral... Ele sempre olhando na direção por aonde viria o Vito. Quando o sol começou a pegar um prumo bom no céu e a manhã escancarou o dia, o Neco viu o Vito apontar ao longe, vindo num galopezinho manso. O Neco escondeu-se atrás do mourão da porteira e ficou com a espingarda engatilhada, o Vito ia se aproximando, ignorava a traição. De repente o estouro do tiro, o Vito cai do baio, mesmo recebendo a carga de chumbo, ele consegue se levantar e correr em direção ao cerrado, as forças vão se esgotando e ele cai debaixo de uma sucupira branca. O Neco sabe que ele está perdido, as mulheres que estavam dentro da casa correm para fora e são reprimidas com violência, o Neco ordena que elas arrumem as trouxas de roupas e fechem a casa. Iriam embora dali, a Lurdinha quis protestar ao ouvir os gritos que vinham do carrascal do lado da estrada, mas foi ameaçada com um punhal. Montaram os três cavalos que estavam arreados na casinha ao lado do paiol. Na fuga, Neco passou pela casa do negro Fulogêncio, que morava já na beira do rio Urucuia, longe, e pediu a ele que fosse até a casa do Vito avisar a família que ele tinha visto o rapaz caído na estrada. Quando o velho recebeu a notícia chamou a cabroeira para irem atrás do rapaz, o velho sabia que o Neco não prestava e tinha cheirado a desgraça no ar. Quando acharam o Vito na beira da estrada, debaixo da sucupira branca, ele estava mortinho, a mão cheia de folhas e as feições do rosto eram de quem sofreu muita dor. A casinha do Neco estava fechada com toda mobilha dentro, ficou assim até virar tapera, o velho baiano andou muito atrás do Neco, mas, este parece ter aberto o chão e entrado dentro. O velho morreu desgostoso, depois disso, a prosperidade da família baiana parece ter chegado ao fim. Seus irmãos foram perdendo o que tinham juntado, alguns foram embora, outros deram para a bebida e tudo foi se acabando, perderam-se todos por esta vida. A terrinha do Neco, ninguém nunca se interessou em cuidar, a casinha foi virando morada de morcegos, as cercas caindo e o gadinho dele sumindo no meio do gado de outras pessoas, hoje, só os esteios de aroeira são testemunhos dessa história triste. O coração humano é mesmo terra que ninguém mede.