Sangue, cebola e lágrimas

- O que é isso no seu dedo? – perguntou a amiga, reparando-lhe o curativo.

- Isto? Ah, cortando cebola.

Em seguida notou-lhe os olhos vermelhos.

- E este choro... também foi cebola?

Lola olhou para sua interlocutora. Nada lhe escapava, tanto que se conheciam.

- Não... sim... quer dizer, mais ou menos... é que fui desclassificada no concurso de culinária.

- Puxa, amiga, que pena!

- Nem me fale. Você sabe o quanto me preparei para isso.

Denise não tinha o que dizer.

- Não se preocupe, querida. Vai passar. Logo, logo, você melhora.

- Eu sei, já não dói mais...

- Estou falando da outra ferida, a da tristeza.

- Ah! – compreendeu Lola. – Sim, eu sei que vai passar. Mas nem gosto de lembrar como tudo aconteceu.

- A faca escorregou?

- Estou falando do concurso – disse Lola. – O motivo pelo qual fui reprovada.

- Oh, claro. Se quiser conversar sobre isso, pode contar comigo – ofereceu-se Denise.

Um breve silêncio instaurou-se entre as duas mulheres.

- Bem... – começou Lola, reticente – Eu já tinha preparado a minha receita de cebolas doces transparentes várias vezes, todo mundo elogiava, era um sucesso. Daí que resolvi me inscrever no concurso, você sabe da história.

- Sim, sei – respondeu Denise, atenciosa.

- Então – continuou a amiga - lá estava eu, cortando as cebolas, que deveriam ser muito finas. Mas fiquei tão nervosa que comecei a tremer que nem galantine sobre uma mesa de pés bambos - e com um trem passando perto!

- Galantine...

- Isso. Daí que a faca tremeu junto, fazendo carpaccio do meu dedo. Foi uma sangueira só, parecia que eu ia preparar um molho pardo, uma morcilla...

- Credo, Lola!

- Olhei em volta, os juízes não estavam prestando atenção, a cebola toda vermelha, aquele coulis de sangue... Não tinha jeito, improvisei.

- Como?

- Na hora de servir, mudei o nome do prato para Cebolas Tintas.

- E...?

- Fui desclassificada imediatamente, porque alterei minha receita na última hora. Era contra o regulamento.

Denise, numa confusão de sentimentos entre o nojo, o alívio e a pena, novamente não tinha palavras. Arriscou:

- Você poderá fazer de novo, não?

- Não! – enfatizou a amiga. – Jamais vou cortar o dedo outra vez. Um chef deve saber manusear facas com destreza, segurança e habilidade!

- Estou falando do concurso...

Nisso, o toque de mensagem do celular de Lola interrompe a conversa. Ao ler, a cozinheira sorri, arregalando os olhos.

- O que foi? – pergunta Denise.

Lola passou a ler em voz alta:

- “Cara chef, sua desclassificação foi injusta. As cebolas estavam ótimas, eu as provei escondido. Gostaria que você viesse trabalhar em meu restaurante. Por favor me ligue.”

- Meu Deus – quase gritou a amiga, interrompendo a leitura. – Alguém comeu aquilo!! Quem é o doente?

- Não tem o nome, mas o restaurante se chama “Il Tavolo di Transilvania”...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Ferida"

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