Miséria observada

Deitou-se em sua cama como quem despeja um saco de areia no chão depois de carregá-lo por caminhos montanhosos debaixo de um sol impetuoso, num espaço de tempo limitado pelas luas. A queda caoticamente orquestrada provocou apenas três movimentos molares no leito, musicados por rangidos de frequências sonoras estridentes, que reverberaram solenes no cubículo onde ele habitava.

Com as costas na cama ergueu a cabeça na direção dos pés para fitar por poucos segundo um televisor velho, uma geringonça estranha de tela cinzenta. Com o movimento precisamente reverso e calculadamente lento redespejou a cabeça pesada sobre o travesseiro de estopa, tentou fechar os olhos, como quem sonho ou recorda, os lábios cerrados não permitiam a noção externa de prazer ou pesar.

Virou-se de bruscamente de bruços, como se pudesse com aquele colchão feito de molas e trapos golpear contundentemente todo o seu corpanzil. Produziu de fato apenas mais movimentos molares seguidos por estridências reverberantes.

Segundos após debruçar-se sentiu junto com o primeiro tocar de pálpebras o peso de uma mão volumosa descendo ferozmente sobre o seu olho direito. Era a sua mão direita que ensandecida tentava violentar seu globo ocular também direito. Ele se viu então envolvido numa peleja estarrecedora em que seus dedos estupravam o seu olho, que contavam apenas com os movimentos do pescoço e das pálpebras por auxílio.

Sentia como se uma agulha aquecida e aguda transpassasse a sua massa encefálica, dor responsável pelo enrijecimento dos seus nervos e perda total da sensibilidade de todo o resto do corpo ausente no embate, que minutos depois já empapava o lençol de sangue e suor. Apesar de tudo ele não conseguia gritar, perturbava-se muito mais ao ver-se gargalhar, numa crise de riso inacessível ao seu vago entendimento.

Acordou sem lembrar que dormira, e sentiu o controle do corpo e da mão direita que se apresentou ante ao rosto, portando em sua palma o globo ocular direito, visto insalubremente pelo esquerdo. Então por impeto guiou com o polegar e anelar direito a esfera óptica pelo seu corpo, logo tocando-o, e com movimentos mais intensos passou a esfregar contra o tórax, depois na virilha, nuca, pernas, até que o globo se dissolvesse numa textura gosmenta de cor pálida.

Após revestir-se daquele fluído, como o feto é revestido pelo líquido amniótico, viu os primeiros raios solares que adentravam o recinto por frestas entre as paredes. Soube que não mais tornaria a sair para transitar entre montanhas.