DESCAMINHOS
Uma menina chorava compulsivamente sentada na calçada daquela movimentada rua. Vestia simplesmente uma camiseta rasgada e uma saia surrada. Seus olhos voltados para baixo deixavam as lágrimas banhar suas sandálias gastas que haviam encerrado aquele cortejo fúnebre. Abandonada e sozinha, acabara de sepultar sua mãe. Os tios já ocupavam a casa onde moravam. Desolada, a menina olhava para o céu e a ele parecia perguntar sobre si mesma e sobre o sentido de sua vida. Suas lágrimas eram agora suas únicas testemunhas e testemunhas de sua dor.
A casa não era muito grande. Ednea era uma mãe sempre carinhosa, como quase todas as mães são. Com carinho cuidava de Cíntia e Cristiano. Este último saiu de casa faz tempo, e já faz seis anos que não se tem dele notícias. Não suportava o clima em casa por causa das constantes agressões de Ernesto, o pai. Disse que voltaria, mas nem sequer soube que o pai havia sido assassinado meses depois numa briga de bar, deixando a viúva com um problema a mais, pois doente, sem forças, sobrevivia de quitandas vendidas em feiras e em lugares movimentados para sustentar a casa, herança do pai e cobiçada pelos seus três irmãos que não queriam que ela ali vivesse. Enfim, uma vida banal e comum, tão comum a tantas pessoas.
Mas não para Cíntia. Eram já dezenove horas, uma pequena garoa trazia frio àquela noite terrível. Cíntia levanta-se, com os braços cruzados ao corpo, os amigos de escola já haviam todos ido embora e ela estava só, como todos ficam ao final dos sepultamentos. Dá de cara com a porta trancada e luzes ao fundo. A TV ligada anunciava gente em sua casa. Os tios já dividiam os simples pertences que ali se encontravam e que eram ainda do seu avô. Titubeou, mas por fim, chamou por Edivan, o tio mais velho que lhe abriu a porta aos berros:
__ Onde diabos você estava menina? Nessa chuva, por que não voltou pra casa direto?
Sem entender, pois imaginava que não seria recebida de volta, Cíntia balbuciou entre lágrimas e choro contigo uma frase única:
__ Pensei que não era pra eu voltar...
O tio nem a deixou continuar e foi logo a puxando bruscamente pelo braço e gritando com a menina, agora mais assustada do que nunca.
__ Anda menina, vá trocar de roupa antes que adoeça. Nossa família está toda aqui, não demore que todos têm fome. Faça logo o jantar.
A menina entrou no pequeno quarto e secou seu corpo. Antes, porém havia sussurrado um “sim senhor” para o tio imperativo. Quis chorar a saudade da mãe, mas nem houve tempo. Parecia que uma festa acontecia em sua casa. Ouvia ao longe frases soltas na sala, vozes indiferentes à recente partida da mãe e mais ainda indiferentes à sua dor.
__ Amanhã. Deixa pra amanhã. Eu vou e faço uma avaliação.
__ Os documentos do pai estão em dia.
__ A gente leva a menina e tenta ver o que fazer com o juiz...
__ Não, ela nunca assinou nada...
Assim, a menina ia traçando seu futuro em frases soltas, imaginando já que seria entregue a qualquer pessoa, que certamente não estaria naquela casa no outro dia. Talvez nem fosse isso mesmo que eles conversavam, mas ela foi logo tirando suas conclusões. Sua mãe sempre dizia a ela que seus irmãos só não a expulsavam de casa porque seu pai havia pedido, em leito de morte, que ela ali ficasse, que não a desamparassem. Tudo por respeito ao pai ou talvez por algum tipo de temor. Diante de tantas circunstâncias entendia ela que estava já pra ser posta para um lugar qualquer.
Jantar pronto, a menina fez o esforço possível para que tudo ficasse do agrado dos tios. Foi dormir. Quis ainda chorar, mas seus olhos úmidos se dividiam entre a dor da perda da mãe e a preocupação com relação a si própria. Pensou no irmão que morava na capital. Cristiano devia estar bem, pois nunca havia retornado. Revirou gavetas e encontrou num papel amarelo um número de telefone e um endereço que seriam dele. Guardou-o em uma mochila que agora se tornara uma mala de viagem. A mãe sempre dizia a ela para procurá-lo caso ela morresse.
O sol brilhou no dia seguinte dissipando a chuva fina e o frio da noite anterior. Um dos tios havia dormido na casa para lhe fazer companhia. Foram embora todos os outros durante a madrugada. Ela não pensou duas vezes. Saiu discretamente com as economias parcas de sua mãe que ela guardava na mesma gaveta. Foi-se. Ainda pela tarde desembarcou na cidade grande e, com informações de um policial conseguiu chegar à ruazinha Antônio Gonçalves, número 102. Sorriu. Bateu palmas e uma mulher de meia idade atendeu-a:
__ Pois não menina? Posso ajudar?
__ Sim, to procurando meu irmão, o Cristiano. Ele está?
__ Cristiano?
Pensou um pouco e depois lhe disse:
__ Ah sei, o moço loiro, bonito e educado! Olha, ele não mora mais aqui. Mudou-se há um ano. Mora ali naquela rua, disse apontando para a rua que ficava abaixo desta.
Apontou para a casinha azul de janelas brancas. A menina desceu sorridente e bateu à outra porta, certa de encontrar o irmão. Uma moça com uma criança sai porta afora e informou:
__ Cristiano? Ah sim, nós nos casamos. Você é Cíntia? Entre querida! Ele falou muito de você e sentia saudades.
A menina entrou. Luiz era o garoto nos braços da moça, seu sobrinho agora. Ela o beijou e sorriu de satisfação. Reconheceu o irmão já adulto numa foto de parede e admirava a beleza e os olhos, iguais aos da mãe. Percebeu, no entanto, que sua cunhada estava meio distante e chateada, quando interrogou sobre a chegada do irmão supondo que ele estava trabalhando.
__ Meu amor, disse abraçando a menina. Cristiano sempre foi um bom marido e um excelente pai. Mas faz quinze dias que ele não volta pra casa. O carro em que viajava caiu num penhasco. Não houve jeito, disse entre lágrimas.
Cíntia desolada saiu correndo e nem percebeu o tempo passando. Chorava em desespero e nem se deu conta que Emily a chamava de volta, pedia que ficasse ali e esperasse um pouco. O trauma da morte da mãe pesou sobremaneira e ela não suportou mais tanta dor. Seu peito parecia querer voar para o alto e o choro estava engasgado no seu fôlego de menina que corria ladeira abaixo e entrava no primeiro ônibus que viu passar. Quando deu por conta de si estava já chegando a sua cidade. Sua casa estava lá, com a ausência da mãe, com o silêncio da morte. A porta, porém estava trancada. Ela tocou campainha, chamou pelo tio. Em vão. Ao lado da janela apenas uma placa: VENDE-SE.