Intolerável

Entrei num bar depois da meia noite.

Era uma sexta feira, acredito. Já faz algum tempo, então não posso ter certeza.

Eu saía de alguma festa tediosa que havia ido. Tinha dispensado meus companheiros e andei por várias horas, sozinho, antes de perceber que estava num bairro completamente desconhecido. Vi um bar aberto numa esquina e entrei. Estava mais para um pub do que para um convencional bar brasileiro.

Fechado, escuro e fumarento.

Mesas de sinuca, música indistinta ao fundo, cheiro de suor e bebida.

Me agradei do lugar,

talvez pela sua decrepitude e pela decrepitude de suas pessoas.

O típico lugar em que Henry Chinaski teria se embriagado.

Pareceu-me apropriado. Resolvi terminar a noite ali.

Andei até o balcão e pedi uma cerveja em long neck.

Não sei quantas garrafas tomei,

não disse uma palavra a nenhum dos bêbados próximos ao balcão.

Simplesmente bebi e esperei que as horas passassem.

E passaram...

Já deviam ser mais do que três da manhã, o bar ia se esvaziando a medida que eu esvaziava mais e mais garrafas.

Então percebi sua presença.

Sentada num canto escuro, fumando sozinha.

Calada...

Riscava num caderno preto de vez em quando.

Bebia pouquíssimo, e entre um cigarro e outro, às vezes bebericava um gole de gim.

Me deixei ficar onde estava até que só restássemos nós dois no pub.

Pedi mais uma long neck e fui ao banheiro.

Urinei, lavei as mãos e o rosto e olhei-me no espelho...

Estava bêbado como o patriarca Abraão.

Quando sai, vi que ela estava ainda no mesmo lugar.

Caminhei em sua direção e sentei-me na cadeira imediatamente a seu lado.

Não disse nada.

Ela acendeu mais um cigarro sem mesmo me olhar e voltou a riscar em seu caderno.

Senti-me invisível.

Não resisti e perguntei-lhe.

“Posso saber teu nome?”

“Não tenho nome”, respondeu-me.

“O que fazes?”, insisti.

“Nada” disse-me, riscando mais alguma coisa no caderno.

“O que fazes para viver, eu quis dizer”

“ Nada, vivo, simplesmente... Me arrasto”, sussurrou e deu um profundo trago no cigarro.

Ela parecia não ter intenção de continuar aquela conversa, então me levantei e já me dirigia ao meu lugar anterior, quando ela falou.

“Fica. Estou entediada.”

Sentei-me a sua frente e tomei um grande gole de cerveja, deixando a garrafa de lado.

“Bem, junte-se ao clube.” Repliquei.

Conversamos por uma hora ou duas.

Sobre vida, morte, metafísica, a origem do universo, Deus, o Diabo, sexo, nossos passados, amores, tragédias, escritores que nos agradavam... Descobrimos que pensávamos de maneira semelhante em vários desses temas.

E assim o bar fechou.

Saímos de lá com o dia claro.

“Tenho que ir”, disse-me, já se afastando.

“Certamente”, respondi, “foi um prazer dividir um pouco de minha miséria com você... mesmo que até agora não saiba o seu nome, nem você o meu. Teria continuado esta conversa até cair no sono.”

Pela primeira vez, ela me sorriu.

“Temo que isto não seja possível, sou intolerável durante o dia.”

“Ninguém é perfeito, hã?”, respondi. “As pessoas dormem, acordam, vão ao trabalho, jogam conversa fora, fingem, amam, mentem...

Ouvem desaforo dos seus chefes, voltam pra casa, brigam com seus cônjuges, quando os têm.

Maridos batem nas esposas, esposas batem nos filhos, filhos batem em seus cachorros, torturam os peixinhos do aquário.

Vivemos numa realidade cada vez mais mecânica, numa realidade cada vez menos tolerável...

Ainda assim vivemos.

Estou aqui, não estou? Estou ao mesmo tempo bêbado e de ressaca. Minha cabeça dói. O sol machuca minha vista.

Mas aqui estou. Você é difícil. É mal humorada, antissocial, pessimista,

Você não odeia... por que acha que odiar é cansativo demais. O amor, da mesma forma, te cansa.

Esperar o amor das pessoas te cansa.

Mas você ama seu cigarro, ama seu caderno, ama as coisas que escreve.

Você ama seu Nietzsche,

‘O amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são.’

E tudo isto te faz uma criatura confusa,

confusa, mas intrigante.

Não conheço você... e ao mesmo tempo conheço o suficiente para dizer isso tudo.

Vejo uma placa pendurada em seu pescoço, e ela diz, ‘aqui não há nada’

Mas eu vejo, vejo por trás do seu Niilísmo. Do seu fatalismo... da sua afirmação.

‘Sou intolerável, se afaste.’

Você tem muito mais do que demonstra.

Me afasto, ou não me afasto, mas espero que caiba a mim a decisão de considerar você intolerável ou não...

Sei, é um discurso impróprio para a hora.

Nunca sei o que é apropriado ou não apropriado de se dizer...

então está dito.”

Ela olhou-me, olhou para os seus pés... Acendeu um cigarro e fumou até a metade.

“Que seja”, disse-me.

Rasgou então um pedaço de papel de seu caderno e escreveu um número de telefone... um celular.

“Ligue-me quando quiser” virou as costas e começou a se afastar.

“Ainda não sei o seu nome” lhe gritei.

“Não tenho nome” respondeu e virou a esquina.

Guardei o número em minha carteira e segui andando...

Pensando se iria lhe ligar ou não.

“Se eu lembrar disso tudo quando acordar, talvez.” Sussurrei enquanto procurava um táxi.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 22/03/2013
Reeditado em 26/06/2013
Código do texto: T4201518
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