Outra Viagem.

Resolvi seguir meus passos, calmamente, deixando o sono manso adentrar minha carne preguiçosa que queria dormir. Lembro-me de um longo horizonte à frente dos meus olhos, ainda no intervalo inter-sono, rumo a sonhos tantos: um horizonte metafórico que queria correr atrás de mim, bem longe da vigília fria, porém, ainda cá, antes de sonhar profundamente. Meu espírito andou à frente de tudo. Ficava um e se ía sei lá quem!

Escolhi acreditar e passei a não mais me ouvir, coisa assim como se me houvessem desprogramado e mandado embora deste mundo para um outro diferente. Pois então não me eram mais minhas as velhas palavras. A voz de ontem estava agora numa espécie de revelação, coisa estranha de entender-se, mas eu achava aquilo natural, o que não deixava de ser mais estranho ainda: não era corpo nem alma: um sonho andante talvez, um caminho enveredado pela morte.

Havia um tempo, sim, santamente disposto para, além de equidistar-me do real e palpável aos olhos, assegurar-me de que tudo era perfeito como um voo que vence as mais altas altitudes e depois pousa manso em lugar conhecido e pré-concedido. Achei graça no lendário viver, na musicalidade dos passos algodoados que certo dava sobre nuvens que não eram as nuvens que faziam chover e brumavam o céu, e escondiam até a lu- cheia.

Minha hercúlea garganta apenas sussurrava. Uma gota aveludada de saliva morna desprendida de minha admiração caiu a misturar-se ao pó do limpíssimo ar que cortava o sonho sem barulhar muito. Quando o crepúsculo chegou, já me haviam travado todas as palavras na garganta e a apenas meus olhos era permitido dizê-las. Havia acabado de descobrir que meu sonho acontecia à noite e eu não era mais o mesmo de antes.

Entre príncipes, fui pássaro voador, dos que sonham e gostam de sonhar. Meu corpo estava silencioso, deitado sobre o leito desforrado do quarto de Daniel. Vi que, naquele ambiente, nada me havia pertencido. Tudo era dele – confirmando-se ao olhar-se a moldura com seu retrato grudado atrás do vidro. Ele ainda era muito jovem quando o acidente aconteceu. Na noite de seu enterro, não consegui dormir sozinho no quarto. Fui dormir com mamãe, cheio de medo de vê-lo amarrado e ensanguentado pela fúria descomunal do automóvel que havia se chocado com o trem veloz.

A gente, quando sonha com essas coisas, continua a possuir uma sombra estranha. Juro que não encontrei o sol que, pondo-me em anteparo, pudesse criá-la. Mas o chão era sim um grande espelho quase dourado, cheio de brilho e cores as mais diversas.

Descalço, sobre a estrada de plumas, continuei a andar. Vi os primeiros pedaços de carne dele; sabia que eram seus , sem ter visto ainda sua face morta, adormecida no mesmo lugar por onde andava desassustado mas esquisitamente curioso para saber até onde chegaria. Ele havia sumido do mundo bem antes que eu.

-Heitor?

Talvez tenha sido a vez mais feliz que tenha ouvido o meu nome. Reconhecia quem era e isso fora a suficiência de minha feliz alegria: eu estava onde meu irmão estava também. E aí, eu havia morrido com ele? Mas não pude ver seu rosto: apenas sua voz próxima aos meus ouvidos atentos ao entendimento. A cama desforrada do seu quarto eu não a via mais: era o pretérito que se achava dentro desse tal sonho, dentro dessa tal morte: tudo apenas uma viagem quase mágica.

-Daniel, onde estamos?

E ouvi então o vento falar por nós dois, dando rajadas fortes – pressenti que a sua fúria era a proibição de nossa aproximação. Nossas almas não estavam preparadas para se abraçarem ainda. Mas o que eu havia visto eram pedaços de carnes desgrudadas de ossos, de cor viva, sem cheiro, agarradas nos horizontes que corriam a atingir até minhas retinas curiosas.

Chorei; chorei desmensuradamente. Olhei para baixo e avistei uma imensa mesa cheia de cadeiras, todas ocupadas por pessoas que nunca havia visto antes. Nem imaginei onde poderia estar. O salão estava tomado por forte névoa alvíssima. Todos estavam cabisbaixos. Havia uma aura de paz e de sossego.

Fui descendo de certa altura e aproximando-me do primeiro deles, justamente o que ocupava a única cadeira da cabeça da mesa. Quanto mais me aproximava, mais chorava a criatura. Era como se eu houvesse entrado em um grosso tubo energizado, assim me vi sumir dentro do seu corpo. A partir desse momento reconheci os que estavam ali – era minha linda família. Eles não conseguiam ouvir-me, mas o senhor que, como um irmão, havia me sugado para dentro de si, pensava exatamente como eu e eram minhas as palavras que ele pronunciava ao ser indagado por todos. Éramos dois em apenas um corpo.

-Ele está me dizendo que já se encontrou com seu irmão.

-Estão bem?

-Heitor, sim!

-E Daniel?

-Ele disse-me que havia encontrado sua voz, pedaços do seu corpo e o barulho forte de certa ventania que os separou.

Quando desencarnei, mamãe ainda estava chorando. Eu, do outro lado, quando tentava aproximar-me dela, sentia que chorava ainda mais; consegui alisar-lhe a face – foi quando desmaiou e eu fugi dali remorseado de certa culpa que ainda não conseguia entender.

Acordei-me de mim, mas sem retornar para casa. Ouvi alguém falar-me que precisava ir. Para onde? Caminhos tão estranhos, sem casa, sem flores, sem água; foi quando me lembrei que desde o acidente acontecido vinte seis dias atrás, não havia comido nada.

O vento retornou forte, o tempo brumou-se ainda mais e eu senti uma vontade forte de rezar. Se soubesse que tudo mudaria tão esplendidamente, rezar seria a primeira coisa a fazer. Senti que o perdão é um amor vigoroso, que cura, que aninha, que carrega os melhores valores. Disseram-me:

-Vamos aprender?

E sem carecer contestar, deixei-me ser levado para uma alameda bastante linda. Até entrar no galpão grande de pé do vale, sabia que havia morrido em um triste acidente. Após alguns anos, passei a ser capaz de visitar reuniões mediúnicas, aconselhar desencarnados apavorados e ainda a sentirem a dor da morte e fazer tantas outras coisas.

Hoje já habito a oitava estação de luz. Já me é muito difícil saber quem é João ou Maria, Antônio ou Carlos. Estou na estação-liberdade, cheio de asas poderosas, mas desinteressado por pequenos voos. Não tenho mais pais, apenas sou o pai e a mãe de tantos que, desgrudados das mentiras mundanas, chegam até nós, quase desalmados, carregados de tanto desamor, à procura de luz e de caminhos.

Sou um sonhador decano. O pesadelo esteve em minhas festas do ontem; já não careço do sono; agiganto-me a sonhar. A oração é o único veículo que me eleva a luzes fabulosas onde, já percebo pela fé,que há nos meus novos olhos; é a casa de Deus, pai de Jesus, donos de todas as almas.

Quando consigo lembrar-me de coisas muito antigas, ligadas aos bens que possuía, às imagens que me rodeavam e enchiam meu mundo carnal, sinto um estranho mormaço de instabilidade que nutre uma fuga enganadora e pareço estar com sono. Mas a pertinácia das almas iluminadas é fecunda, e aí me lembro das orações e agiganto-me e vou ajudar pares e ímpares, em soma infindável de cuidados. Toda oração ainda é-me pouca.

Depois que eu li esse relato numa curiosa visita que fiz a um centro espírita, passei a ler mais sobre o Evangelho segundo o Espiritismo e me interessei. Não me é mais lógico ser agnóstico: é necessário caçar as palavras que ainda permanecem emudecidas no que devemos crer. A vida tem guardado para nós presentes tão perfeitos que, se andarmos sobre orações fortes e fazendo o bem, podemos alcançar. Continuo a crer que os céus não possuem limites entendíveis apenas pelas coisas da carne. Os homens devem procurar os caminhos reveladores do bem e passar a acreditar no que lhes chega mais dogmático do que real. Há, dentro de nós, certos fantasmas delinquenciais, sem poder para criar juízos benévolos que, provindo de onde quer que seja, só querem nos presentear com a solidão ignorante dos que nada buscam de novo na verdade e conseguem nascer quase mortos. A encarnação deve ser suficientemente santa para ensinar ao espírito, em suas múltiplas e vindouras reencarnações, que apenas Deus é a absoluta verdade e está em todo o bem. Os caminhos, bons ou ruins, estarão à frente de nossos olhos, empurrados por nossos corações, que, a depender do instinto selvagem ou da benevolência das traduções da alma, levar-nos-ão a esses ou aqueles lugares; A reencarnação é a possibilidade que Deus nos dá para reconsertarmos nossas cruzes e edificarmos o significado do nosso amor próprio, aquele que geramos com nossas obras, nossas dádivas verdadeiras. Desconhecemos referenciais puros que, às vezes, estão tão próximos de nós, e nossas almas, tão longe e desviadas deles.