A SEPARAÇÃO DO MEU AMIGO CHATO
 
         Quando meu amigo me ligou, no fim da tarde, para contar que o casamento tinha acabado, desconsiderei meus sentimentos iniciais e me dispus a ouvir as lamentações de quem temia repartir o patrimônio, procurar um apartamento para morar, ficar longe dos filhos e, por fim, acessos de raiva, jurando vingança.
         Exatamente como já ouvira de outros amigos.
         Então, dei-me conta de que quem estava me ligando era o Marcelo. Ele, apaixonadíssimo pela mulher, fiel a ponto de irritar os amigos e que chegava a ser chato quando falava da relação dos dois. Francesca era uma deusa. Perfeita. Esposa ideal e blá, blá, blá. Alguém sempre arranjava um jeito de mudar de assunto. Chato o Marcelo.
         O que mais nos incomodava, ao ouvir o Marcelo falando, é que havia felicidade nos olhos dele e a voz era pura sinceridade. Todas as coisas que não funcionavam em nossas relações, na dele funcionavam perfeitamente. Era chato ver o Marcelo sempre falando de como tudo dava certo prá ele. E a gente ficava lembrando da cara amarrada da própria mulher, das enxaquecas, das broncas cada vez que se chegava atrasado em casa, da restrição explícita a todos os amigos. Todos, sem exceção. Mas com o Marcelo, não. Nada disso acontecia.
         Quando saíamos do bar de encontro nas quintas-feiras, só o Marcelo assobiava. Para o resto dos amigos, a alegria terminava ao por o pé fora do bar. Para Marcelo a alegria ia continuar quando chegasse em casa. Chato o Marcelo. Muito chato.
         Por esta razão, quando me dei conta de que era o Marcelo no telefone, quase deixei cair o aparelho. Logo percebi que algo muito sério havia acontecido e suspirei fundo, para me preparar para ouvir uma tragédia. Não, pensei, algo assim não cabe num telefonema. Repassei rapidamente os compromissos do resto da tarde e decidi convidá-lo para conversarmos no bar de costume. Ele achou ótima a idéia. Iria para lá naquele momento e ficaria me esperando. Tudo bem, dou dois telefonemas e já te encontro.
         Quando cheguei no bar, Marcelo me esperava numa mesa de canto, com uma garrafa de cerveja e um copo de tequila vazio. Os olhos brilharam quando me enxergou. Levantou da cadeira e me abraçou demoradamente, com a cabeça enfiada em meus ombros. Mantive o abraço apertado até sentir o corpo dele relaxando. Sem nos dizermos qualquer palavra, sentamos.
         Ele ficou em silêncio por um tempo, como se estivesse tentando conter as lágrimas. Respeitei o silêncio, embora estivesse estourando de curiosidade. Naquele pequeno instante, passou-me pela cabeça fantasias que nem ouso confessar.
         Marcelo deu um gole no copo de cerveja, passou o braço pelo nariz e ficou olhando o guardanapo na mesa. Minha impressão era de que o guardanapo pudesse ser uma tela de cinema passando um filme. Mas nada comentei. Esperei que ele tomasse a iniciativa da conversa.
         Por um momento me concentrei no ambiente do bar: várias mesas de casais em conversas animadas, no fundo um som de bossa nova. Eu estivera ali anos atrás, não no bar, mas no momento. Estivera no sentimento de que algo desmoronara. Tom me dissera coisas pela poesia de Vinícius. Tom me dissera coisas que ultrapassavam relações perdidas. Vinícius me dissera coisas que projetavam vida depois de amores perdidos. Não ousei qualquer comentário com Marcelo.
         Num determinado momento ele agarrou o copo de cerveja com força e, trêmulo, me propôs um brinde.
         Brindei, à espera da razão do brinde.
         - A Francesca, a meus filhos, ao que nunca mais seremos, disse ele.
         Permaneci calado. Estava ali para escutar.
         - Terminou. Ela já alugou um apartamento e está se mudando no fim de semana. Leva as crianças. Eu nem percebi que isto estava acontecendo. Estávamos bem, até viagem para Natal tínhamos combinado. Tô arrasado. A vida acabou. Não sei como viver sem ela e sem as crianças. Entro em pânico só de pensar em ficar morando naquela casa vazia.
         A partir daí não conseguiu mais falar. Dava um tempo, tentava recomeçar, mas o nó da garganta barrava qualquer tentativa. As lágrimas corriam pelo rosto dizendo-me da dor sobre a qual ele queria falar.
         Ficamos muito tempo ali, em silêncio apenas quebrado para pedir chope ao garçom. Uns cinco ou seis chopes depois ele voltou a falar: contou como tinham se conhecido, como tinham comprado a casa, como tinham criado os filhos, como ela tinha sido a única mulher da vida dele e tudo o mais que se vive em uma relação de mais de quinze anos, contados namoro, noivado e casamento.
         Ouvi tudo atentamente, sem tentar consolá-lo ou dar qualquer conselho, que homens não precisam de conselhos. Homens precisam de ombros para poder encostar a cabeça e chorar sem vergonha. Homens precisam do direito de chorar sem que sejam chamados de fracos. Homens podem ser frágeis e fortes ao mesmo tempo. Em momento algum Marcelo falou mal de Francesca, nem a acusou de qualquer coisa. Marcelo estava fragilizado, mas jamais foi fraco.
         Num determinado momento não contive a curiosidade e perguntei a ele qual o motivo da separação.
         - Ela não disse. Quando perguntei, ela apenas disse que não queria falar no assunto. Não tive argumentos. Por isso não sei a razão da separação. Não a culpo. Apenas aceito a vontade dela.
         Naquele momento entendi que Marcelo não é um chato. Marcelo é um homem forte e maduro. Marcelo vai enfrentar o período turbulento do início da separação e sair dele muito mais bonito do que já é. Não conheço nenhum outro homem que tenha aceitado uma separação sem uma explicação, sem uma razão, um motivo, por mais imbecil que seja.
         Definitivamente, Marcelo nunca foi um chato.
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 12/03/2013
Reeditado em 15/03/2013
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