Minha História.

Eu tinha apenas cinco anos quando meu tio Agnovitch me pôs no velho ônibus que nos tiraria de Varsóvia. Ao fim dessa viagem cheia de incertezas, quanto ao destino, pensei, eu e tantas outras criancinhas, em desconhecida terra, incomum vilarejo. Deixei o curto convívio entre as outras e passei a morar nos fundos de uma velha adega de paredes escuras. Essa estranha morada, que ganhei de estranhos, deu-me a sobrevivência.

Quando o tempo andou e eu estive pras bandas da adolescência, ouvi contarem pedaços separados de minha história familiar. Uma história diferente das tantas que se costuma ouvir. Nela, faltou-me o convívio normal a qualquer criança simples, e me sobraram pesadas lembranças do olho e do rastro da guerra.

Meu pai chamava-se Vlon Steine; minha mãe, Ruth Ghost. Quando pressentiram os dois que Auchwitz lhes era inevitável, trataram de livrar-me dele e conseqüentemente da morte. Foi aí que fui posta nas mãos protetoras de tio Agnovitch. Levou-me depois ouvir deles o que deveriam fazer comigo. Dois dias após ele me pôs num velho e surrado ônibus cheio de cruzes entre as cores vermelha e branca. Passei a ser protegida, até a fronteira de Varsóvia, pela Cruz Vermelha.

Mais tarde desembarcaria no Brasil. Iria morar longe do mar como assim preferiu meu tio, para que, nalguma investida nazista à nossa nova morada – chegar até ela, não lhes fosse tão fácil. Puseram-me em Ouro Preto, onde reiniciei minha história de vida, dividida entre o mar e a guerra. Longe dos dois, fisicamente, estive tão perto das lembranças pétreas que me contundiam os pontos da alma.

Sempre esperei que um dia eles aparecessem à minha frente. Infelizmente, até mim, só chegaram as notícias da guerra, suas mortes. Mas, trouxeram-me relatos grandiosos de sua passagem por Auchwitz. Uma verdadeira história de amor ao próximo, à raça, à solidariedade humana.

Passo a contá-la – um pedaço dela, apenas –, agora. Não posso nem devo calá-la na calmaria quase doentia do meu claustro memorialista. É que relembrar me dói muito...

“Rose Marie não poderá sofrer, meu querido irmão. Pegue-a e ponha-a no carro 26 da Cruz Vermelha. Seu condutor já estará sabendo dela. Facilitará tudo. Já foi muito bem remunerado para essa tarefa. Eu não posso ir agora. Há muita gente precisando de mim. Vou ficar, ajudar a todos e, só após Auchwitz morrer, aí sim, poderei pensar em estar com vocês. Eu os acharei, estejam onde estiverem. Ouvi falar muito bem das terras brasileiras. Quem sabe não seja nosso novo horizonte?”

Tantas vezes li esse pedaço de bilhete! Tio Agnovitch o conservava em seu poder com tanto carinho! O papel amarelado, suas letras já brancacentas, mas me era multicolorido e vivo diante do meu olhar recordador..., sua leitura me era além de catártica.

Quando a terrível mortandade em Auchwitz estava atravessando seu mais alto ponto, papai prometeu a si mesmo que não arredaria o pé de lá, antes de fornecer dele, aos seus companheiros de exílio forçado, tudo o que pudesse. Como médico poderia aliviar a dor física e aliviou, não apenas essa, mas todas as outras formas dela que lhe chegaram à alma como suplício alheio.

Eu soube por terceiros e quartos – aqueles que tiveram mais sorte que ele e escaparam da prisão – que no fim de sua estada vivida naquele monstruoso lugar – negro campo onde a morte sorria festiva e farta – , ele entrou em um vasto galpão onde funcionava uma câmara de gás mortífero, de mãos dadas, ligando uma multidão de judeus injustiçados com a pena de morte. Quem esteve a vê-lo fez chegar a mim, embora muito tardiamente, essas suas últimas palavras: “Não é lícito a um judeu solidário ao seu povo, deixá-lo em polvorosa, mesmo que a separação deste lhe confira a sobrevivência. Não há judeus diferentes de judeus. Fomos escolhidos. A morte de hoje representará apenas um sono forçado. Amanhã cedinho Deus nos resgatará sorrindo.”

Fiquei sabendo que ele, minutos antes de morrer, teria recebido de um médico oficial nazista a permissão para se livrar da morte, caso aceitasse ajudar ao regime nazista em suas experiências científicas com humanos. Soube também que, ao adentrar a câmara de gás, não deixou cair de seu rosto qualquer lágrima; ao contrário, enxugou as tantas frias dos que ao seu lado estiveram, aos que ele pedia para rezarem com fé, antes do martírio já tão próximo.

Minha mãe dava-lhe força ao ajudá-lo nos serviços de enfermagem, o que lhe era impossível fazê-lo antes, dado o seu pavor de ver sangue derramado. Acho que o fez por amor a ele e ao povo judeu. Ele a chamava pelo carinhoso apelido de Dvorá, que em hebraico quer dizer abelha.

Hoje, aos meus 65 anos de idade, sem filhos, possuindo a mesma profissão de papai, nenhum parente próximo vivo, é quando a guerra me fura mais profundamente. A família, para nós judeus, é, além de uma instituição, um poço de santidade e sabedoria. Deixei de herdar da mama, tenho certeza disso, tantas lições de vida! Seu ventre fez-me ser judia como ela e poder representar a força singular de um povo escolhido por Deus.

Há duas solidões dentro de mim: a que começou com minha primeira separação física e essa de hoje que, apesar de me cercar de amigos, não me deixa esquecer as mazelas da diáspora que a guerra fez. Não cresci filha, não pude aninhar-me no colo de mamãe, não ouvi de papai as lições religiosas que, se não tivesse morrido tão cedo, certamente me teria ensinado. Como a guerra me roubou tudo!

Mas o vento faz redemoinhos e leva a poeira e o papel para o alto de longínquos lugares, além das montanhas próximas do céu, e anjos lêem, e escritores sonham, e, acordados, escrevem contos que se contam até.

Certo dia, após bondosa calmaria, caiu-me certo papel voador que trazia uma história bonita. Li-o e transformei-o nesta narrativa. Enquanto dormia, aprendi a história de Rose Marie. Em sonho pareceu-me ser uma bondosa mulher – alta, magra, sorriso feliz à face. Com a mão estendida disse-me: “Chamo-me Rita. Dou-te a essência de um conto, uma gêmula da narrativa que deverá nascer imensa de tuas mãos. Faze-a tu, como se fosse só tua.”

Ainda hoje sei que essa judia mimosa continua morando em Ouro Preto, a falar diariamente com o seu passado, sem dele arredar nem o pé.

Quando a mulher do sonho contou-me essa história, irrequieto me acordei e, com ele à memória, corri à escrivaninha e tudo escrevi. Hoje tenho dúvidas se não conheço Rita, porque a vejo quase que diariamente na face de Vera, uma velha amiga de faculdade que aprendi a admirar.

Após tudo escrito, hoje publicado, lembrei-me de que sou cristão. Volto a enxergar-me como apenas um escritor, flor de uma emoção que passou, após deixar o seu cheiro e seu sabor registrados no meu peito e em minha alma.