Ouvindo Tambores

Essa noite Horácio não conseguiria dormir. Seu emocional, os sentidos andavam meio abalados. Desconhecia-se por um instante, ficou escutando seu coração bater até o dia amanhecer. E assim, foi percebendo a pulsação da pele a partir do pulso subir, segundos depois a batida se estendeu até o centro do peito. Dava para marcar o compasso 4/4 ritmado, sua pressão chegaria a 12/9. Nada aconteceu de sério ao longo dessa madrugada. Uma torneira persistia em gotejar na vizinhança, pois o som espirrava lá de fora, pingos renitentes pela janela do seu quarto. Isso não chegava realmente a lhe incomodar, mas tornava-se parte da crescente sonoridade vizinha, da performance dos tambores tão próximos, batidas do ensaio do Olodum ou de algum espetáculo afro-brasileiro no centro histórico do Pelourinho, bem ao lado.

Cada canto das paredes do quarto de Horácio apresentava tons menos sóbrios, matizes quentes, música escrita com giz riscando cifras e letras fora do comum, estava tudo diferente da mesmice recorrente que demorava em escutar, e onde costumava parar para redesenhar seus pensamentos soçobravam ideias que se repetiam sem puxar o sono. Procurou uma maneira de evitar a perversa insônia mas nadica de nada resolveu. Ficou bolado, impaciente, levando a mão em direção a mesinha de cabeceira para deixar o celular, bem ao lado do livro que ganhara de uma querida amiga, As Travessura da Menina Má, sob os óculos de lentes de grau forte fixadas numa armação redonda dourada, notadamente arranhadas pelos quase dez anos de uso, seu parceiro diuturno das coisas do ofício, pausou mudo, ressaltado pela réstia de luz que pendia do lustre do corredor.

A claridade lhe deixava confiante de ter uma noite tranquila, viajante sobre seu catre livre do escuro, longe dos pesadelos. A impressão que tinha de seus 'anteojos' raros, de hastes intimamente frágeis, de instrumento muito pessoal, muito útil, era de algo precioso em sua transparência cristalina. O meio revelador de tantas experiências, cores, formas, texturas, corpos e visões indescritíveis de mundo, estruturas caóticas, sistema que nos últimos quatro anos passou a expor uma grande crise, um erro de run-time que ainda apresenta tendências obscuras, sem solução ou possibilidade de término. Isso foi passando à sua vista, o rumo das coisas, que de colorido muitas vezes não tem nada.

Horácio sentiu-se obrigado a levantar pela natural vontade de ir até o banheiro, depois de aliviado seguiu até a sala, e ao tentar literalmente arrancar em direção a seu objetivo, ao fincar o pé, cambaleou, parecendo que seu corpo mortiço tinha adquirido um peso a mais amassando o grosso chinelo emborrachado, ele foi sombreando o chão de tacos feito uma tosca alegoria empurrada sem freio, e passou o infindável corredor que pouco a pouco se abria, um esforço que iria lhe ajudar a ultrapassar aquele verdadeiro túnel elástico. A redescoberta do espaço doméstico, a sensação que lhe tomou o coração tinha uma dimensão surreal; o velho sofá mimetizava-se sob o cobertor abandonado, a poltrona balançava e o acolhia ainda mais confortável, como quando era nova. Já não recebia outro usuário sobre sua surrada capa de napa há muito tempo, parou paciente, então aguardava cada visita animada por semanas. Assim corria os dias trabalhados por Horácio, enriquecidos pelos movimentos e processos da dança da vida, indo compor sua música numa Tagima escarlate esmaltada, sem mais dúvidas sobre o que continuar a fazer com os estudos de economia ambiental; e se confessava dos prazeres recorrentes com os botões de porcelana deixados na caixa de costura de Lúcia, quando tinha de costurar um "feriado" qualquer em suas meias. Aquele era seu país, seu território fora do padrão, fruto de sua arte de saber viver, o espaçoso apartamento antigo de quatro amplos quartos bem situado no calmo, urbanizado e comercialmente estruturado, bairro de Nazaré.

Em seus lugares, os objetos continuavam empoeirados, sempre a sua espera, mesmo inanimados eles possuíam um certo espírito presente, enxergassem na solidão itinerante, aguardavam Horácio para um inventivo “bate-papo” mesmo em libras, abusados objetos silenciosos, insólitos companheiros de muitas luas. O computador escravo, permanentemente ligado ocupava o tempo de trabalhar conectado a internet, o cooler barulhento precedia o silêncio do amanhecer. Com muita informação circulando pela linha da banda larga ele se mantinha ativo pela noite a fora, mais quentes nesses dias de verão. A televisão e ele ficavam alguns momentos separados só voltando a boa convivência durante os telejornais ou filmes inéditos, como dois ociosos necessitados consumidores um do outro. Mas Horácio acabava se convidando para um chat no Facebook e A TV perdendo conteúdo e sintonia com sua realidade. Enquanto ele resiliente digitava poesias sonambulas.