Conversa estradeira
O tempo é coisa que não existe, doutor. Um cachorro, por comparação, ele, por mais esperto que seja não sabe diferenciar o hoje do ontem e nem do amanhã. Eu mesmo acho que a gente só se torna diferente dos bichos quando começa a ter lembranças do que passou, até aí todo vivente é igual, sem consciência da vida. Se eu não sei que eu sou gente e que estou no mundo, então não sou gente por inteiro... O senhor não acha?
Pois é, um projeto de gente, né? Igual assim... Uma criança precisa de ter alguém pra cuidar, dar o de comer, proteger das coisas ruins, dos erros, é igual uma criação, precisa ter gente pra cuidar, se não, fica ruim. Se não morrer, pega medo de gente, sabe?
E foi? Um menino que foi criado com lobo e ficou igual lobo, doutor? Onde foi isso? Há, nos estrangeiros, né? Não duvido não, moço, o mundo é um lugar cheio de coisas sem explicação. Tem hora que os bichos parecem ter alma doutor. É ciência do mundo. O senhor veja a cobra, é um bicho traiçoeiro, natureza de cobra é coisa ruim mesmo, mas cobra não morde mulher pejada doutor, ela foge. E como é que a cobra sabe que a mulher ta pejada doutor? Eu lhe digo, é ciência doutor, ciência do mundo...
O que é ciência? É uma sabedoria diferente das coisas desse mundo. È um encanto. Ela existe, mas não é pra todo mundo. Tem gente que sabe um pouco aqui, outro mais um pouco ali, mas viver dela no ‘todo dia’, ninguém vive. Não senhor...
Olhe, tem coisa que o povo antigo vai ensinando para os mais novos, outras parece que o próprio Deus, ou o próprio diabo sopra nos ouvidos de algumas pessoas, tem coisa que os bugres ensinavam para quem eles confiavam, outras vieram com os negros lá das terras deles... O mundo também ensina doutor...
Eu? Há doutor, eu aprendi a benzer criação, coisa da lida da gente, sabe? Curo bicheira benzendo o rastro do animal, sei oração pra não cair do cavalo, sei a lua boa pra plantar, cortar madeira, cabelo de gente... Mas isso é trivial... Tem gente que sabe muita arte nesse mundo. O negro Mamede, morador do Araticum, esse é sabido nessas coisas. Se uma cobra começa a matar muita criação numa fazenda e mandam chamá-lo, ele sobe na cerca do curral e faz uma oração, manda as cobras de a fazenda ir embora daquela terra, se o dono quiser ver as bichas indo embora ele o leva a uma divisa e mostra-as saindo. E se for cobra mandada, ele revela, diz até quem mandou. O negro pega uma casa de marimbondo na mão, doutor, e não leva uma ‘pregada’, carrega pra onde quiser...
Há, ensinar não ensina não, acho que é um pacto lá deles... Ele diz que essas coisas, não são coisas de se ensinar e de se viver fazendo... Uma vez me contou que tem certas coisas que o sujeito faz, que ele perde um dia a mais de sua vida...
Pacto sim, doutor, esse Mamede mesmo já me disse que ouve vozes de um guia, um espírito de outro mundo que revela a ele muitas coisas desse mundo e do outro.
Doutor tem os rituais, quem procura acha um jeito, não é mesmo? Eles têm os seus caminhos... Tem gente que ouve essas vozes, doutor. Tem uns que rezam pra ir embora, procuram ajuda em terreiros, em curador, outros, respondem a elas, perguntam o que ela quer, desse jeito acham o caminho...
Não sei se é bom, ou se é ruim, doutor. Quem é que sabe o que é bom ou o que é ruim nesse mundo, não é mesmo, doutor? Esse povo é muito crente, fazem reza pra tudo quanto é santo, tiram folia de reis todo ano, encomendam defuntos, puxam a ladainha e não perdem missa quando vem padre no lugar; então, como é que eu vou falar que são do diabo... Eu não digo e nem maldigo, em coisa que eu não entendo não dou afirmação...
Estamos chegando doutor, depois daquela matinha ali adiante tem um corregozinho, quando atravessarmos já estará bem pertinho da sede, seu Zé Neném está te esperando desde a semana passada, já apurou os cobres pra comprar a vacina para o rebanho... É o primeiro a fazer vacinação aqui no Urucuia, doutor, é como eu digo: com a chuva a chover e nós a beber, ninguém poderá nos deter. Ê mundo cacete.