Ludmila nas unhas
O ferro elétrico pesava sem colaborar na tarefa de esticar as linhas e mangas da camisa, nesse meio tempo Horácio conseguiu escutar um blues enquanto já compunha algo para tocar assim que terminasse de levar o lixo para fora de casa. Ao retornar da lavanderia, se descalçou e tirou as meias suadas, entrou em estado de alegria visivelmente interessado em escrever para Ludmila, os estudos o aguardava na pequena sala de trabalho, ali logo tratou de organizar algumas leituras que o ajudariam na pesquisa para construir um personagem significante, arrumou o material necessário ao ensaio, e também para um projeto que precisaria apresentar em pouco menos de quinze dias na universidade.
Antes de qualquer coisa, ele necessitava de um estimulante para uma empreitada que lhe exigiria horas de dedicação, uma xícara de café quente lhe cairia bem. Antecipou o momento que não dava mais para adiar, era uma coisa ainda mais prioritária que o texto a ser impresso para uma matéria do curso, pois era algo que haveria de ser gravado urgentemente, para não cair no esquecimento do sono ou no inevitável cansaço que homeopaticamente vem se sencostar às suas pálpebras meadas lá pelas Altas Horas, obrigando-o ir menos tarde para a cama. Isso, o revira forçando a levantar bocejante, mas determinado, inúmeras vezes para alterar uma única palavra, no mínimo, reescrever uma frase completa, um parágrafo inteiro, ou até refazer tudo sobre o assunto que estava em andamento. Uma inquietação desgastante.
Horácio sentou e coçando a barba puxou a cadeira de trabalho dando um gole rápido e prolongado queimando a ponta da língua, droga - exclamou. Aliviado, começou a experimentar uma boba aceleração cardíaca conforme desenrolava os pensamentos e a digitação mostrava a sua criação no monitor do notebook. Assim, escreveu versos e carta casando línguas diferentes:
Amada Ludmila, parece fácil ser transparente, ser íntimo mesmo sem espaço, mas sabemos o quanto representa ser verdadeiro no diálogo entre amantes que se reconhecem. Você me inspira confiança para conversas sem o receio de preconceitos ou interpretações imaturas da realidade. Esse momento é delicado, lindo e de uma riqueza sem dimensão, por tudo que seja importante pra gente. O desejo é denúncia (pra você também?) na alegria e nas intenções nada filosóficas, que vão além do tempo real que dispomos. Os instintos e a ternura afloram, percebo cada vez mais à flor da pele toda energia que flui dos (seus) olhos, não sendo privilégio (meu) nenhum vê-la ”desabrochando” no despertar dessa primavera. Alguém já deve ter-lhe dito: “seus olhos estão brilhando”.
O esforço de criação de Horácio se prolongou pela madrugada, dando literalmente umas três laudas inteiras cheias de andorinhas húngaras, fecskë espaçosas. Horácio até quis propor um encontro na saída da última palestra compartilhada com ela, mudar o “script”, todavia, a vontade ficou entre os “limites que cercam o coração” diante da companhia próxima de Ludmila, e dos amigos comuns espectadores naquele instante do evento.
Estar ao lado ou em frente dela tornou-se um “jogo” prazeroso; olhá-la nos olhos o preenche tanto quanto o simples toque, e ficar juntos, então, faz esse movimento um crescente de impulsos quase impossível de se lidar impunemente. A permissão do afeto vai se tornando espontaneamente perfume, o cheiro dela invade suavemente o seu espaço, e Horácio cantarola com autonomia “hummingbird, don't fly away", em um tom diferente das outras vozes presas em seu MP3. De repente calça os chinelos, suspende a respiração, dá alguns passos pelo corredor abrindo os braços entre uma lembrança e outra. Uma poesia nasce como mais um recado para ela.
Mão e Anéis
Turmalina rosa em prata retorcida
Fenda sincera e colo de insônias
Sorte que me abandona aos jogos
Deito livros de estórias na tua rua
Nenhuma estação me abriu assim
Sou mãos abertas pedindo ajuda
Sem aguentar as dores do corpo
Nem as emoções que perduram
Arrasto meus dedos nos muros
Quero escrever a poesia nas unhas
Quebro o perfume da sua presença
Vem e castiga-me infinitamente
Tão óbvia, pensou Horácio, essa explosiva combinação de químicas humanas, cabe (nem diz “pode” ou “deve”) ser aceita naturalmente, e relaxa, num jeito seu, criativo, de se presentear nua entrega interativa e (não só) aparentemente “inconsequente”. Quer transitar de maneira consciente, razão e emoção, essa linguagem subliminar entre eles, das texturas móveis do corpo que dança. Ele ousa imaginar fantasias a dois ainda precoces para um baile em tempo ainda imprevisto, por que não? E conclui, do céu não passará!
Parodiando a última mensagem anônima postada por Ludmila, ele dispara um torpedo pelo celular: “um beijo delicioso e um grande abraço” que se apaga junto com o break da bateria descarregando. Nem cogita ligar, pois já é muito tarde, e Horácio quer evitar qualquer constrangimento no fim desse dia, por motivos que só ele e ela sabem. Ele afasta-se dos livros, vai escovar os dentes de biscoito já morrendo de sono, apaga a luz, deita-se em seu canto esperançoso e espreguiça-se como gato. Dorme cobrindo Ludmila sonhando com um poema novo. Deixa que a curiosidade roa as unhas.