Fragmentos...

As células me doem, as células que insistem em viver. Acordei dezembro, bem sei. Perdi quem sabe uma quinzena entre o fim do malfadado novembro e esse mês que todo ano traz o pedido de paz. Preces, num sempre à maioria negada.

Não me mexo, as paredes brancas cegam-me. Há pelo quarto indícios de outras presenças. Não as vejo... Há agulhas, sangue e dor. Marejam-me os olhos. Bem sei do meu futuro se nele persistir. Bem sei que não há surpresas em natais, não há mãos nem olhos em vestes vermelhas capazes de milagres. Acordei e de sã consciência peço pelo sono do esquecimento.

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A casa parece-me estranha. Foi um longo período para um mês. Foi um breve período para tantas mudanças. Deixei o hospital com a promessa de voltar. Não cai no esquecimento, infelizmente. E tantos e tantos outros novembros e dezembros viriam... Amargo o gosto do retorno. Há ainda aquele momento entre o sono e a realidade a me levar e levar pra longe onde tudo vejo e observo, mas lá não me querem e desço e desço...

Mas, há em mim um ser que tudo navalha e que de tudo debocha, observo tantos olhos, tantas vozes a me visitarem. Ao fitá-los pergunto-me sentirão pena ou alívo? Alívio, um alívio camuflado de bondade. Dirão aos seus inconscientes: Não foi comigo, melhor assim.

E com o passar dos dias virarão as costas a esquecer de natais e anos novos. Esquecerão de leitos de dores que não são nem nunca serão seus. Bem sei...

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- O que quer ganhar de presente de Natal? Perguntam-me.

- Nada.

- Livros?

Penso melhor e aquiesço, livros são sempre bem vindos.

Sinto um desassossego além do limite no ar. Fecho os olhos. Ainda as dores só me fazem pensar num presente: "Não sentir dor". Não entenderiam. Não estaria ao alcance de ninguém.

- Está dormindo?

- Não.

A inquietude aumenta, percebo que há algo a ser dito. Fito o vazio. As paredes de ontens, hoje, parecem-me paredes de um cárcere, evito-as. Num gesto com as mãos, mãos ainda marcadas e coloridas de roxo, indago o porquê das reticências.

- Suas irmãs irão viajar - Respondem-me.

- Pra onde?

- Praia.

Tento me mover, não consigo, as dores aumentam.

- Ele deixou?

- Sim.

Uma simples palavra, uma simples resposta e me vem à mente uma vida, não tão longa, mas já pautada pelas privações. Nada de passeios, nada de natais, nada de nada.

- Que bom pra elas.

Droga, odeio que me vejam chorando. As lágrimas insistem. Não posso escondê-las ou me trancar em um porão de mim mesma.

- Entenda, ele mudou. Eu mudei - Murmura a voz.

Egoísmo meu, egoísmo. Engulo a revolta, tranco à sete chaves todas as palavras que gostaria de cuspir e vomitar no chão ali diante de minha realidade.

- Seu acidente... Ninguém teve culpa - Insiste.

- Eu sei.

- Muita coisa foi tirada do lugar. Não pensamos como antes. O sangue...

- Quantas foram?

- Não sabemos ao certo, talvez quatro ou cinco transfusões.

Silencio-me, gostaria de ficar sozinha. Não fico. A voz continua. Meu egoísmo cega-me.

- Mas antes da viagem haverá o Natal. Teremos uma ceia. Seu namorado virá.

Desespero-me, desde as ferragens a nítida sensação que perderia também o namorado, ele me deixaria, estava escrito. Ceias para quê ceias? Eram proíbidas todas as ceias, todos os ritos. Pecado, diziam-me. Amar a Deus sobre todas as coisas. Coisas, não concebo, não consigo achar palavra que substitua, coisa. Tudo são coisas. E Deus deveria ser maior do que essas coisas. Tantas e tantas vezes indaguei, coloquei-me contra, argumentei. Não havia ouvidos, não havia espaço para dúvidas. Faltava-me a fé, diziam.

- Comemoraremos o quê?- Pergunto num to jocoso.

- A vida.

- Não é tarde pra isso?

- Está viva.

Viva, estou viva.... A que preço? Em troca, uma ceia de Natal, uma viagem que nunca será minha.

Malas a serem feitas, alimentos a serem preparados. Ouço a babúrdia, risos, correria. Cochichos. Tão amarga é o gosto da água que me servem. De espinhos feito meu leito. Há fagulhas a queimarem minha carne mutilada, há o sangue de outro em minhas veias. O meu sangue, o meu... perdeu-se, escorreu rumo ao precipício de mim mesma.

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- Como está?

Não sabia ao toque quem seria. Não sabia da voz o sorriso, a lágrima ou o escârneo.

Mas identifiquei a sombra masculina do outro lado do telefone antes de fornecer minha resposta. Foram muitos anos desde a primeira ceia, mutos anos num quebra-cabeças sem fim.

- Bem, estou sempre bem

- Te admiro por isso.

- É mesmo?

- Claro, tem dúvidas?

De mim só um suspiro impaciente conseguiu arrancar.

- Quantos anos? - Continou -

- Faz diferença? Olha,estou ocupada. Véspera de Natal.

- Desculpe. Pensei em pedir desculpas.

- Desnecessario.

Desligo o telefone sentindo calafrios, rios de lembranças invadem-me. Só mais uma perda, só mais uma. Foi-se com a primeira ceia, foi-se a ilusão. Não posso e não devo chorar.

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Todos à mesa. Inclusive o pobre e infeliz porquinho. Faltava-lhe a maçã. Bobagem, mais uma bobagem. Bobagens necessarias. Crianças felizes, adultos a tecerem comentarios , uns inteligentes outros nem tanto. Noto o esforço, a competição ainda entre irmãos, os filhos, os planos de fim de ano. Outras viagens. Nada mudou.

- Ainda tem dores? Não me parece bem - Diz-me uma de minhas irmãs ao notar meu gesto de impaciênca com meus pensamentos.

- Estou bem, dores só as fantasmas. Mas fantasmas não me assustam.

- Nunca assustaram - Uma outra irmã afirma.

Não gosto de ser o centro das atenções. Antes que voltem ao meu passado, melhor retirar-me. Tento levantar-me e me impedem...

- Sabe que se não fosse seu acidente as coisas teriam sido diferentes. Para pior - É a vez do irmão mais jovem opinar.

As coisas, sempre coisas. Sinto-me inquieta, ingrata.

- Foi há tanto tempo, teriamos contornado de um jeito ou de outro nossos percalços -

Peço licença, afasto-me.

Sozinha, como sempre fui e talvez sempre serei, penso em todos os natais, penso no dias que foram-se, nas pessoas, nos sonhos, nos milagres inexistentes. Penso no sacrificio de Cristo, na carne e no sangue... No sangue... Sangro.

Almma
Enviado por Almma em 22/12/2012
Reeditado em 22/12/2012
Código do texto: T4048811
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