O doente
Ensimesmada, não ouvira nada do que fora decidido na reunião. Ainda bem que sua opinião não fora pedida. Ficaria constrangida com a constatação por parte dos presentes de que estava alheia a tudo e a todos. Mas, logo caiu em si. Quem, naquela reunião, ousaria pedir sua opinião? Ou, antes disso, quem a notaria? Ela, um nada.
Respirou aliviada ao perceber que a reunião terminara. Voltaria a sua mesa e a enfeitaria pelo resto da tarde, até que os ponteiros do relógio a avisassem sobre o momento de ir embora.
Estava na empresa há pouco tempo. Aquele não era seu ramo. Gostava mesmo de ser enfermeira, cuidar de seus doentes. Que falta lhe faziam. Às vezes sentia vontade de largar tudo, de jogar tudo para o alto e voltar a sua vida de antes. Antes, antes de quê?
Voltou no tempo e se lembrou do dia em que chegara à mansão. O proprietário, rico empresário, estava doente e necessitava de cuidados de uma profissional na área de saúde. Ela fora bem recomendada.
Tímida, chegou em frente ao portão da mansão e foi atendida pelo segurança: "Estão a sua espera...". Atravessou o imenso jardim, observando a piscina que parecia chamá-la para aliviar aquele calor de início de verão.
Em frente à porta que a levaria ao interior da mansão, ela parou. Esperou alguns instantes e, uma empregada, avisada pelo segurança, a fez entrar. A sala era maior do que a ala inteira do hospital onde trabalhava. O chão de tão limpo parecia um espelho, onde ela, pensativa, chegou à conclusão de que não fazia parte daquele mundo.
Sua vestimenta simples, coberta pela bata branca, não combinava com aquele lugar. Destoava dos móveis, das paredes, dos quadros, de tudo que ela vira até então. Por alguns momentos chegou a esquecer do porquê estava ali.
Em meio a seus pensamentos, uma voz ecoou: "Menina, menina, está me ouvindo?". Percebeu que já deviam tê-la chamado antes, sem que ouvisse, absorta que estava em seus pensamentos. Apressou-se em responder: "Sim senhora.". Não era de muitas palavras. Era de muitos pensamentos.
A dona daquela voz era uma mulher de seus sessenta anos. Pelo modo como estava vestida, percebeu que não era a dona da casa, deveria ser a governanta ou algo parecido. Estava certa. Encaminhou-a ao primeiro andar da casa e parou em frente a uma porta no final do corredor. Abriu-a e mandou que entrasse para começar seu trabalho.
Ao entrar, viu uma cama enorme, onde calculou rapidamente caberem no mínimo cinco pessoas, mas lá só estava uma: o doente.
Parou em frente à cama e observou aquela criatura que outrora deveria ser imponente, talvez arrogante, mas, que, agora, estava ali, completamente entregue aos cuidados alheios. Ele dormia. Ela observava cada detalhe.
A governanta os deixou e ela continuou sua observação. Devia ter sido um homem bonito, daqueles que levam as mulheres ao caminho da perdição. Seus traços afilados, porém, másculos, não escondiam suas peraltices quando jovem.
Permaneceu ali naquela observação, quase saboreada, por minutos incontáveis.Tomou um susto, quando os olhos do empresário se abriram subitamente. Como se a conhecesse, não estranhou sua presença, nem perguntou seu nome. Começou a conversar com ela, contando seus males, o início da doença, suas empresas. Assunto não faltava. Na verdade, não conversavam. Era um monólogo, em que ele expunha sua vida como quem pinta um quadro para um observador atento. De fato, ela bebia cada palavra que ele dizia, como se fosse a última gota de água para alguém que está perdido no deserto.
Completamente envolvida pelas histórias, ela só se deu conta de quanto tempo havia passado quando a governanta voltou e disse que estava na hora do jantar. Chegara pouco depois do almoço, no início da tarde, e já era noite? Percebeu o quanto havia se encantado com as histórias contadas por aquele homem à beira da morte.
Os dias se passaram. Ela virou sua confidente. Ele contou que, além de suas três filhas, geradas no matrimônio, com sua falecida esposa, tivera mais duas num caso extraconjugal. Na verdade, amara tanto a outra, que pensara em largar a esposa para ficar com ela. Mas, como o destino nos prega peças, descobriu que a esposa estava doente, quase morrendo. Não teve coragem de abandoná-la. E, a outra, julgando não ser amada por ele, sumiu no mundo, levando suas filhas gêmeas, recém-nascidas.
Embora soubesse que não havia outro jeito, arrependia-se no íntimo por não ter ido embora com a mulher amada.
Aquela história, em particular, emocionou-a. Gostava de histórias de amor, principalmente as que não tinham um final feliz, como Romeu e Julieta. Nunca tivera um grande amor. Alguns namorados, flertes, mas nada nem ninguém que a arrebatasse, que a fizesse ter vontade de cometer loucuras.
A cada dia que passava, ganhava a confiança do paciente. A descrição que haviam feito dela não chegava aos pés do que realmente era: um anjo de candura. Cuidava dele com muito afeto e dedicação, ao menor suspiro, estava pronta para atendê-lo. Nem no dia de folga, deixava-o. Temia que ele morresse sem que ela estivesse lá para se despedir, ainda que em pensamentos,
Além do mais, ele a sentia como uma filha. Suas filhas moravam fora do país, quase não as via. As filhas do caso que tivera com sua amada não sabia por onde andavam. Precisava e merecia em seus últimos dias de vida de um afeto de filha.
Mas, uma coisa começava a angustiá-lo. Não adiantava se enganar. Mais dia menos dia, morreria. E o que seria daquela jovem que dedicou seus dias e noites a cuidar dele?
Certamente, iria cuidar de outros doentes. Voltar à vida que tinha antes de conhecê-lo. Mas, não parecia suficiente a ele. Aquela menina cuidara dele com tanto afeto, como jamais tivera de nenhuma das filhas. Ela era mais do que uma filha para ele. Não podia desampará-la.
Corria contra o tempo em busca de uma solução. Sabia que a morte o espreitava, arrastando-se pelos corredores da mansão até chegar o dia de levá-lo.
Até que, após vários dias e noites, sem pensar em outra coisa, teve uma ideia: iria casar-se com ela. Mas, casar? Então, não a via como uma filha? Sim, claro que sim, ela era sua filha de coração. O casamento, na verdade, seria uma farsa, apenas no papel, para que ela pudesse ter direitos legais sobre os bens materiais que ele queria lhe deixar. Se apenas a colocasse no testamento, certamente, seria contestado, e, mesmo que ela ganhasse a causa, isso levaria anos se arrastando nos tribunais. Assim, o casamento era a melhor solução.Estava decidido: iriam casar-se em breve.
E, foi com um brilho que jamais se vira antes em seus olhos, que deu a ela a notícia. Sim, foi uma notícia, dada sem grandes cerimônias. Não foi pedida em casamento, como sempre sonhara desde criança. Amava-o como a um pai e , ao ouvir aquelas palavras, ficou pasma. Como podia? Ele, percebendo que havia sido mal interpretado, tratou logo de explicar seus motivos.
Os olhos dela se encheram d'água. Como podia aquele homem preocupar-se com ela? Ela, que sempre se achou um nada. Que fora abandonada num orfanato, quando ainda era um bebê. Ela, que nunca soube quem eram seus pais, que fora rejeitada por eles. Ela, que nunca soubera o que era o amor de uma mãe nem de um pai. De repente, se via ali, frente a frente com aquele homem que conhecera há poucas semanas, mas com o qual tinha criado um vínculo por toda a eternidade.
Amou-o mais do que nunca. Era o pai, a mãe, a família que nunca tivera. Enternecida, abraçou-o. Para ela, não importava a herança em si. Não ligava para isso. Importava-lhe o amor de pai que ele sentia por ela. Isso era tudo.
Toda aquela cena e os dias ansiosos que a antecederam acabaram por esgotar as últimas forças do homem. Morreu em seus braços. Ao perceber, ela chorou como uma filha chora a morte de um pai.
Dias se passaram após aquela tarde fatídica. Ainda sentia tristeza porque ele havia partido, mas agradecia todos os dias a Deus por ter tido a oportunidade de conhecer um amor verdadeiro de pai.
Voltou à sua vida de sempre, cuidando de seus doentes, sentindo-se útil.
Certo dia, foi de novo chamada para cuidar de uma doente que não teria muitos dias de vida pela frente. Foi, levando consigo todo o amor e dedicação que possuía. Ao chegar à casa, deparou-se com uma senhora frágil, de aparência amável, que, ao olhá-la mais de perto, exclamou: "Meu Deus, eu morri!"
Não entendeu as palavras ditas pela senhora. Chegou mais perto e, docemente, disse: "Não, a senhora não morreu. Sou sua nova enfermeira, vim cuidar da senhora!".
Incrédula, a senhora pediu que pegasse uma caixa de sapatos que estava na parte de cima de seu guarda-roupa. Ela prontamente atendeu ao seu pedido. Ao voltar com a caixa nas mãos, a senhora pediu-lhe que a abrisse. Dentro da caixa, havia uma carta, um pequeno álbum e uma medalha.
Sem que ninguém lhe dissesse nada, instintivamente, começou a folhear o álbum e seu rosto doce se desfez em pavor. Era ela nas fotos. Desde criança, na adolescência, e na vida adulta. Mas, não entendia, era ela, mas não era. Mesmo rosto, mesmo corpo. Mas, nunca vestira aquelas roupas, nunca estivera naqueles lugares. Como podia?
A senhora sugeriu que lesse a carta. Talvez ali encontrasse a explicação que procurava. Leu cada palavra como um mendigo devora um prato de comida. Ao terminar a leitura, pegou a medalha, tinha uma igual. E, naquele momento, as coisas começaram a fazer sentido para ela. Sua mãe, abandonada pelo homem que amava, deixou ela e a irmã gêmea na porta de um orfanato dentro de uma cesta com aquela carta e uma medalha para cada uma. Depois, sumiu no mundo.
Aquelas fotos, na verdade eram da irmã gêmea.Aquela senhora a havia adotado quando ainda era um bebê, mas não tinha condições de criar as duas, por isso só levara uma. Nem ela nem as freiras jamais contaram às irmãs sua verdadeira história. Seguiram caminhos diferentes, mas quis o destino juntá-las novamente um dia para que a história fosse esclarecida. Juntas, mas separadas. Sua irmã havia morrido há poucos meses, vítima de um acidente. Por isso, ao ver a enfermeira, a senhora julgou que estivesse vendo sua irmã morta.
Tantas ideias e pensamentos povoaram a cabeça daquela menina. Demorou a se refazer de tantas descobertas, mas, por fim, resolveu o que fazer: iria provar que era filha biológica daquele homem do qual já era filha de coração. Agora entendia tanta afinidade desde o início.
Anos se passaram. Finalmente ela conseguiu provar que era filha legítima daquele senhor garboso que conhecera de forma inesperada. Foram anos de angústia e agonia, mas que finalmente cessaram quando o juiz lhe deu ganho de causa. Todavia, ao fim de tudo, não se sentia vitoriosa. O que ganhara? As irmãs jamais a amariam, jamais teriam qualquer tipo de sentimento bom por ela, viam-na como uma aproveitadora.
Na verdade, às vezes se arrependia de ter trilhado aquele caminho, desviado-se de sua verdadeira vocação. A única coisa que sempre quisera era uma família e a tivera com aquele homem que, mesmo antes de descobrir ser seu pai, já o amara dessa forma e fora correspondida.
Agora, estava ali, rica, mas solitária, como sempre fora.