O PREGADOR

A história do pregador tem mais de vinte anos. Começou com a chegada à cidade de Paulo Abílio, vindo de Russas, no Ceará, para a casa de um irmão, Miguel Abílio, que já morava no bairro Paredões há algum tempo. Tal qual os Moura e os Beta, em Mossoró, eram famílias cujos homens, em sua maioria, exerciam a profissão de barbeiros, na dos Abílio quase todos eram alfaiates, arte passada de pai para filho. Assim, um outro membro da família, vinte e cinco anos, veio para ajudar na oficina do irmão.

Com três anos de trabalho, Paulo já se conceituara como bom profissional e, de comum acordo com Miguel, resolveu montar sua própria alfaiataria.

Namorando uma moça, Luzia, do mesmo bairro, há mais de um ano, decidiu casar-se, celebrando-se a cerimônia na capela de São José, cujo pároco, Pe. Alberto, já era seu conhecido e amigo, pois, sendo católico praticante, Paulo ia a todas as missas dominicais.

Com pouco mais de um ano começaram a chegar os filhos: Arlete, Pedro e Moisés, nascidos a intervalos de um ano e meio a dois. Parou no terceiro. E,como o tempo não para e passa com rapidez despercebida, logo o casal se viu com os filhos crescidos e em tempo de escola.

Paulo tornara-se amigo do Pe. Alberto. Após as missas, em companhia da família, costumava ficar para um dedo de prosa e, vez por outra, o estava convidando para almoçar em sua casa, o que o padre adorava, pois saia da rotina da cozinha do Abrigo, que era um anexo da igreja. Nessa convivência, o padre observava o interesse de Moisés, o filho mais novo, pelos assuntos das conversas, notando, em algumas de suas intromissões, uma curiosidade que despertava a atenção de todos, fosse pela vida de Jesus, fosse pela história da Igreja ou de alguns santos, sobretudo São Francisco de Assis. Por isso, o padre foi-lhe dando alguns livros de leitura acessível à sua idade. Um dia perguntou-lhe se gostaria de aprender a ajudar à celebração da missa, o que aceitou com satisfação. Dois domingos depois, fez, muito feliz, a sua estreia como acólito.

Chegou um tempo - Moisés fazia o segundo ano ginasial – em que foi presenteado com uma Bíblia, recomendando o sacerdote que começasse pelo Novo Testamento e, à medida que fosse lendo, anotasse qualquer dúvida para conversarem a respeito. Admirava o interesse e a desenvoltura com que falava sobre os Evangelhos, sobre o Apocalipse, as cartas do apóstolo Paulo.

Vez por outra tirava algumas horas para conhecer a origem do mundo – Gênesis, a história de Abraão, de Moisés e dos profetas. Chegara a decorar alguns Salmos.

Tornou-se, assim, a Sagrada Escritura seu livro de leitura assídua e tema de sua preferência em qualquer reunião familiar. Mesmo nas rodas de amigos, das quais até se reservara um pouco, costumava chamar a atenção para determinadas passagens da Bíblia com um entusiasmo que surpreendia os companheiros.

Observando isso, seu pai conversou com o Pe. Alberto e este chamou Moisés para um diálogo. Disse que era bom para seu espírito a leitura da Bíblia, mas ele, como jovem, devia diversificar suas leituras com bons livros e, também, acompanhar os amigos em seus entretenimentos sadios. Podia ter sua namorada, ver bons filmes, ler bons romances; que não fizesse da leitura santa uma obsessão. Perguntou-lhe se desejava ser um padre, surpreendendo-o a resposta negativa. Queria aprender o suficiente para pregar a palavra de Deus, mesmo como leigo, sempre que se oferecesse oportunidade.

Com acesso à biblioteca do padre, interessou-se também pela história da vida de alguns santos – Santo Antônio de Pádua, Santa Terezinha, Santo Agostinho, São Tomaz de Aquino, Santo Ambrósio, porém a que mais o impressionou foi a de Antão, que viveu longos anos no deserto, isolado de tudo e de todos, sob permanente tentação do demônio, o que superava com firme fé em Deus, penitência e oração.

Não obstante a conversa do Pe. Alberto, seus pais observaram que uma transformação se operava no comportamento de Moisés. Não apenas dedicava horas à leitura, mas também à oração e meditação; andava como que absorto, alheio aos acontecimentos, a quase tudo.

Com o passar do tempo, foi-se despojando de todos os hábitos que lhe pareciam supérfluos, Tornou-se frugal na alimentação. Entendeu que deveria adotar uma vestimenta apropriada, não uma batina, mas uma túnica azul, comprida, e com um cinto branco. Pediu à mãe que lhe confeccionasse uma. Luzia tentou, sem êxito, demovê-lo dessa ideia que lhe pareceu extravagante. Nem os conselhos do padre Alberto o desviaram do seu propósito. Continuava frequentando a igreja para assistir as missas dominicais.

Mas, ao sair do recinto da igreja, se afastava da companhia dos pais e costumava caminhar, a princípio pelas ruas do bairro onde morava, mas, depois foi estendendo sua peregrinação pelos outros bairros. Onde houvesse oportunidade, parava para falar aos que o quisessem ouvir, não lhe importando se eram dois, cinco ou dez. Entendia que a propagação da vida e da palavra de Cristo não deveria ser apenas dos sacerdotes da Igreja Católica ou dos pastores de outras Igrejas. Qualquer bom cristão poderia ou deveria ser também um evangelizador e ele se julgava capacitado e na obrigação de difundir o que ele chamava a doutrina da salvação.

Mas a forma que julgava melhor era de casa em casa. Caminhando pelos bairros, pelas ruas, parava em uma determinada residência, cumprimentava as pessoas da família e indagava se poderia falar-lhes um pouco sobre Jesus. Dado o assentimento, perguntava se havia uma Bíblia em casa. Houvesse ou não, costumava abrir a que trazia, lia, em voz alta, determinada passagem e, a seguir, fazia, inteligentemente, o comentário do trecho lido e tecia outras considerações sobre a vinda do Messias, sobre como Ele pregara a Paz entre os homens, a prática da Justiça, da Caridade e do Amor ao próximo; sobre a obrigação de os católicos irem à missa aos domingos e, se possível, confessar os pecados e comungar, pois a hóstia era, na verdade, a transubstanciação do Corpo de Deus. Sua voz era mansa e sua palavra convincente, de modo que, quando saía da casa deixava em todos – até em alguns que por simples curiosidade acorriam ao local - uma agradável sensação de serenidade espiritual.

Aquela figura exótica de um homem ainda moço, alto, barbas e cabelos longos, vestindo uma túnica azul, calçando sandálias, caminhando pelas ruas de Mossoró, Bíblia na mão, longe de parecer um fanático, despertava atenção e até o respeito nos que o viam. Alguns meses, quase um ano, Moisés continuou nesse mister diário, às vezes só retornando à sua casa à noite.

Um dia, porém, entendeu que, para evangelizar as pessoas da cidade, existiam os padres. Por isso, deveria levar a palavra de Deus aos lares mais distantes, às famílias que viviam isoladas no campo. Já passava da meia noite, quando sua mãe percebeu que a luz do seu quarto estava acesa. Era uma sexta-feira. Abriu sua porta e viu que ele estava lendo o Evangelho. Depois que ela se recolheu, Moisés abriu a porta e foi para o quintal. Já era noite alta. Olhou para o céu e contemplou todo o seu esplendor de indescritível beleza, milhões de estrelas iluminando o firmamento, que parecia querer desabar sobre a terra. Ficou em êxtase. Ajoelhou-se no chão e orou, refletindo no poder infinito de Deus. Quando deu por si, os primeiros raios da aurora despontavam.

No dia seguinte, sábado, saiu de casa por volta das cinco da tarde, conduzindo um pequeno alforje com algumas provisões. Disse aos pais que iria demorar alguns dias, não sabia quantos, mas que não se preocupassem. Os pais não conseguira demovê-lo do propósito; ele já era maior de idade.

Muitos o viram caminhando, parando aqui e ali para falar às pessoas sobre a vida de Jesus, que se deixara crucificar para redimir-nos do pecado e nos salvar. Para isso, Ele falara às pessoas exortando-as ao desapego aos bens terrenos e à busca da salvação de suas almas através da oração, da humildade, da prática do amor ao próximo e da caridade. Falava-lhes como Jesus operara grandes milagres e ressuscitara mortos, fora martirizado, morto na cruz e ressuscitara a si próprio gloriosamente.

A noite ia escurecendo e Moisés continuava sua caminhada. Grupos de trabalhadores que retornavam da jornada semanal nas salinas viam aquele vulto alto, indo em direção a eles. Parava-os para lhes falar: estava feliz por encontrar em seu caminho homens humildes, corações puros, tementes a Deus, que, cansados do trabalho, regressavam às suas casas, ao seio de suas famílias. Falava-lhes sobre a vida e mensagem de Jesus, que O conservassem em seus corações, pois só assim teriam paz na terra e a salvação de suas almas.

Homens que cavalgavam pela amplidão da várzea, viam, ao longe, aquela figura estranha caminhando só, na vasta planície povoada de carnaubeiras. O interessante é que aquela visão não os atemorizava; alguns até persignavam-se em respeito, mesmo sem saber de quem se tratava.

Passou a noite e rompeu a madrugada. O sol despontava em todo o seu esplendor, anunciando a aurora. Mas o vulto, aos poucos, prosseguia. Se havia um casebre parava, conversava com os moradores, abastecia-se de água e continuava sua caminhada até que o viam sumir no horizonte. Passaram-se os dias, não se sabe quantos. Ninguém mais dava notícia.

A família procurou informações sobre o seu paradeiro. Fazia já quase três meses que o Sol nascia e se punha, os dias e as noites sucedendo-se. Muita gente acreditava que Moisés, com esse tempo todo de jornada, já deveria estar bem distante prosseguindo em suas pregações. Só de raro em raro chegavam vagas informações de sua passagem por algum lugar, notícias, porém, não confirmadas. .

Alguns anos se passaram e ninguém mais teve notícias. Isso intrigava o Pe. Alberto e angustiava a família. Após tanto tempo de espera por notícias, sua mãe, antes em permanente ansiedade, acordou um dia informando que sonhara com o filho, que estava bem. Desde então ficou em estranho e tranquilo silêncio. Não chorava mais. Apenas orava.

Moisés, numa caminhada pelo litoral do Piauí, apanhara uma grande chuva, até que alcançou algumas casas. Bateu numa e um cidadão abriu a janela. Aquela figura estranha o assustou, mas ante as suas informações, deixou-o entrar. Surgiram uma mulher de uns sessenta anos e uma jovem de uns trinta. Vendo-o todo molhado naquela vestimenta bizarra, a mulher deu-lhe uma roupa do marido para trocar, ofereceu-lhe algum alimento e o acomodou num quarto vazio. Moisés despertou no outro dia ardendo em febre. A jovem apareceu, viu que estava doente, disse-lhe que continuasse deitado e iria preparar-lhe um chá. Entretanto, a febre não cedera; pelo contrário, subira e Moisés ficou inconsciente. Afonso, o dono da casa, foi à farmácia, explicou ao farmacêutico a situação e este lhe deu uma caixa de comprimidos de antibiótico, para ser tomado de 8 em 8 horas. Só no quarto dia Moisés despertou. A jovem, sentada ao lado, enxugava-lhe o suor da testa e lhe sorriu. Aquilo o surpreendeu e agradou. Experimentou uma sensação jamais sentida; sorriu, também e perguntou-lhe o nome; era Paula, Indagou quantos dias passara inconsciente. Quatro dias. Paula ofereceu-lhe um copo de leite, que ele aceitou. Continuaram conversando e ele lhe contou a sua história Paula ouvia atentamente. Em determinado momento pegou-lhe a mão direita e a afagou. Ele aceitou, tornando a sorrir. Então sua mente começou a raciocinar. Achava que já cumprira sua missão e que Deus, em seus desígnios, o conduzira àquela casa e àquela jovem. Perguntou a Paula se tinha irmãos; ela respondeu que tinha três: dois homens e uma irmã que se casara.

Recuperadas a saúde e as forças, pediu a Afonso para permanecer mais alguns dias em sua casa e se ofereceu para auxiliá-lo em seu trabalho, um pequeno engenho. Afonso, que também conhecera sua história e simpatizara com ele, concordou. Moisés e Paula sentiram que gostavam um do outro. Um dia, pela manhã, Moisés, após uma noite de orações, perguntou a Paula se casaria com ele. Ela disse que sim, dependia da concordância dos seus pais, que foi dada.

Moisés disse que iria trabalhar mais algum tempo para ter condições de alugar e montar uma casa, a fim de poderem casar-se. Um ano depois, Moisés e Paula casaram na capela da cidade. Mais um ano, e o primeiro filho, a quem deu o nome do sogro, Afonso, nascia, sadio e forte. Mais um ano, e veio Luzia, nome de sua mãe.

Um belo dia Moisés resolveu viajar com a família a Mossoró. Queria surpreender seus pais. Realmente, foi uma grande surpresa e uma imensa alegria para os pais e irmãos. Essa alegria, no entanto, foi quebrada por Moisés quando perguntou pelo Pe. Alberto: falecera há alguns meses.

Apesar da tristeza, no primeiro domingo de dezembro houve um almoço festivo, no qual Moisés agradeceu aos seus pais o apoio recebido e a Deus pela missão que cumprira, como também pelas graças e recompensas recebidas.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 29/11/2012
Código do texto: T4010390
Classificação de conteúdo: seguro