O milagre.

Em um recanto do sertão conhecido por Veneno, existe o povoado do Mata Mata. De não mais que 30 casebres, incrustados em lugar horroroso e miserável; perdido por Deus e esquecido das autoridades.

Casinha aqui outra ali, economia de subsistência, da terra quase infértil.

Paragem de povo triste, sem eira nem beira, mal tratado e sem perspectivas. Conformados e confortados pela ignorância. Plebe feia de dar dó.

Em um belo dia triste, surgiu no Mata Mata, viajante desorientado buscando o arraial do Guariba, buscando indicação do atalho certo, resolveu pedir informe no barraco à beira da estrada.

_Ô de casa! Ô de casa!

Dona Joaninha dos Piolhos, que estava em sua rede, realizando a “sesta” pós- almoço, teve um sobressalto:

_Oi, tô indo!

E coçando os cabelos desgrenhados, rumou ao vestíbulo do lar.

_Diga, moço?

_Senhora sabe dizer a estrada pro Guariba?

_Sim sinhô, segue reto até a estrada fazê pé de galinha, lá pega o dedo da esquerda (apontava ao tempo que dizia em direção à direita).

O viajante agradeceu, e compadecido da condição lascada de Joaninha, resolveu lhe fazer um agrado.

_Minha senhora, tenho aqui no embornal, três ovos que catei na caminhada, vou dar a você.

Os opacos olhos de Joaninha sorriram.

_Deus lhe pague!

Mal o viajante deu as costas correu para cozinha e guardou com todo carinho os ovos no fundo do saco de arroz.

Voltou à rede, mas no resto da tarde foi impossível voltar a dormir, em sua cabeça agora além dos piolhos se passavam os três ovos, sonhou acordada com eles até o fim da tarde.

Na boca da noite, chega à casa seu Chico das Lacraias, esposo de Joaninha, e é recebido com euforia pela mulher:

_Chico! Hoje um galego passô aqui e deu de presente três ovo!

_Num diga! (Chico se enchendo de alegria).

_Digo sim, verdade, oi cá (enquanto levantava triunfante o ovo com as mãos).

_Acredito não, mulhé, tempão num como ovo! Faiz que vou comê dois.

Neste momento, da felicidade se fez desavença:

¬_Como assim come dois? (questionou Joaninha já suspeitosa).

Com um ar de autopiedade justifica Chico:

_Oxente, sô, carpi o dia inteiro, mereço comê pelo menos dois!

_Não, não! Eu ganhei os ovo eu como dois!

_História é essa, mulhé?

_Os ovo são meu, Eu vô come dois.

_Cê fica deitada dia intero, eu na roça, eu como dois.

E Joaninha já muito azucrinada retrucou:

_Eu como todos três!

_Como assim?

_Eu como todos três! Eu ganhei os três e como todos três!

_Não mesmo!

_Eu como todos três!

A disputa tornou-se violenta com empurrões de lado a lado e a piolhenta que não era de fugir de briga, impeliu Chico com força, que se estatelou no chão da cozinha, Chico em um impulso de raiva se levantou agarrado em um pedaço de lenha, e desferiu com desmedida força um único golpe na fronte da infeliz, Joaninha soltou um berro aterrorizante e foi ao chão desacordada. Chico das Lacraias se desesperou:

_Matei a mulhé!

Pela porta observou que os vizinhos vinham ao socorro de Joaninha, tão rápido quanto pode empregou fuga dali.

Seu Bastião Medalha e Mané Comprido que haviam escutado o pavoroso grito rumaram para a casa e encontraram o corpo, tentaram em vão reanimá-lo, mas Joaninha estava em estado comatoso, mais gente foi chegando e após várias vezes auscultarem o peito, e tentarem sentir os pulsos chegaram à infeliz conclusão: Joaninha dos Piolhos estava morta!

Óbito confirmado deu-se início aos preparativos do velório, foram arriadas as redes do quarto e retiradas as cortinas que faziam as divisórias dos cômodos, aumentando assim a capacidade de lotação do barraco, foi trazida da cozinha uma velha mesa e posicionada no centro do grande cômodo onde acomodaram a defunta, por fim dispuseram as poucas cadeiras pelos cantos, aos pés do corpo foram reservadas três cadeiras para os rezadores.

As notícias correm rápido no Mata Mata, de desgraça então nem se fala e logo toda população confluía em direção ao velório. Cada família que chegava era uma comoção só.

A sentinela constituía-se de um ritual regido em seus pormenores: algumas mulheres chorando, outras fuxicando nos cantos, as crianças eram mantidas na cozinha do lado de fora do casebre, e os homens solvendo doses de cachaça e discutindo sobre o ocorrido.

Mané Comprido era o mais revoltado, Já encachaçado amaldiçoava Chico das Lacraias:

_Vou pegá esse desgraçado, onde se viu? Batê em mulhé? Mais vou pegá ele e mostra o que é cabra homi de verdade.

Com a noite caindo foram espalhadas velas por todo o casebre, e já com este clima mais nuvioso chegaram os rezadores, que completariam a cerimônia, gente muito respeitada na comunidade, eram eles Seu Reginaldo Mata Junta, Seu Rubão e Zizinho Perneta. Este último foi carregado da carroça e acomodado na cadeira do centro, devido a uma deficiência física adquirida ainda na infância, quando por curiosidade verteu um tacho de água fervente sobre suas pernas, por pouco não morreu, e depois de meses com as pernas enfaixadas feito múmia e litros de bálsamo feitos por Tabajara Curandeiro se restabeleceu, mas teve como sequela as pernas grudadas, ao contrário de que todos arrazoavam levou uma vida normal, se tornou artesão, casou-se com Ermelinda Babosa e teve onze filhos.

Rezadores acomodados deram início as preces, tudo corria nos conformes, e até a rede que serviria de esquife à finada já havia sido separada.

Já na madrugada seu Zizinho começou a ter uma inquietação, como que pressentindo o que estava por vir, uma sensação de medo começou a apoderar- se do pobre coitado, começou a ter impressão que a defunta vez enquanto ajeitava pequenos movimentos, o forte odor de suor e aguardente misturado ao cheiro das velas, e o ambiente um tanto sombrio acentuavam o pavor de Zizinho, foi quando ele resolveu confidenciar seu medo aos outros rezadores.

_Tem coisa errada, seu Rubão, tem coisa muito errada aqui, eu quero ir embora.

_Deixa disso, home, não tô vendo nada de errado.

_Mais eu acho que a finada se mexeu, eu vou embora.

Mas foi pressionado a ficar por Mata Junta:

_Pode fazer desfeita dessa não, cê tá aqui pra encomendá a finada, deixa de história!

Zizinho se resignou com a situação, voltou a orar, mas agora de olhos fechados.

Alheia a tudo e a todos Joaninha começava a emergir do profundo sono, gosto de sangue na boca, têmporas doloridas, tomando consciência, porém ainda desorientada.

O povoado inteiro ainda se concentrava no casebre, quando Joaninha em um movimento lento retraiu os braços e apoiou as plantas das mãos sobre a mesa, e iniciou com vagaroso movimento a alçar o tronco. Tão moroso quanto pavoroso, o movimento foi acompanhado por todos os presentes, ninguém teve a capacidade de se mover, jaziam todos petrificados, presenciavam algo surreal como que se estivessem em um sonho em preto e branco acompanhavam a cena em silêncio, os segundos pareciam horas. Joaninha continuava a se alinhar ascende à mesa, olhos ainda fechados, tentava se localizar, se entender. No silêncio ouviu-se a voz de Mané Comprido:

_ Me caguei todo!

Dos Piolhos havia terminado o movimento, finalmente sentada, de olhos ainda cerrados, cabelos desgrenhados, sangue seco nas comissuras da boca, vieram-lhe finalmente à mente: “os ovos”, arregalou os olhos e fitando os três rezadores aos seus pés disparou com grito medonho:

_Eu como todos três!

Do transe fez se o pavor, a desesperação, enfim o “estouro da boiada” fora uns poucos que desmaiaram, todos desejavam escapar da tenebrosa arapuca que o destino lhes havia unido.

O populacho desembestado com corpos trêmulos e pelos arrepiados confluiu para as duas rotas de fuga: as portas do barraco, mas os átrios não comportavam tamanha vazão, teve gente que empreendeu fuga pelas janelas, mas era povo demais pra pouco buraco, então sob tanta pressão o casebre fraquejou, as tábuas foram levadas “no peito” pelos desesperados. Uma vez fora do circo de horror, cada um desempenhava escapada da melhor forma que suas pernas vacilantes lhes permitiam. Na deslavada carreira foram deixados para trás velhos e crianças, era cada um por si.

O grosso da horda aplicou a evadida morro acima pela estrada que ia pro Guariba entre eles estava Mata Junta que, durante a fuga, teve sua consciência pesada: Zizinho, ninguém ajudou o Zizinho.

Apresentou presença de espírito, parou e voltando-se à turma em fuga começou a gritar:

_Gente, temo que voltá, a ”bicha” vai comê o coitado do Zizinho!

Mas ninguém cessava a fuga, até mesmo filhos do Perneta cruzaram em correria. Mata Junta fixou olhar nos desgarrados que vinham morro acima e sob a luz do luar foi então que, no meio do bando que subia, vislumbrou algo incrível; em velocidade espantosa, ultrapassando a todos a largas pernadas era Zizinho Perneta que gritava:

_ “Volta correr as perna despregou”.

Mata Junta ainda estático acompanhou com os olhos sua passada por ele, marcha firme, de fazer inveja a atleta de ofício, agora já transpunha os líderes da macabra maratona.

Desaparecendo do campo de visão ainda pode se ouvir:

_ “Volta a correr as perna despregou!”