MEMÓRIA DO BORDEL
                                                        
 
                                                         Sentado na cadeira com estofado puído de uma mesa reservada junto ao caixa, observava a Paraguaia em suas lides. Teria, talvez, seus setenta e poucos anos, mas continuava a figura central de um dos mais freqüentados “pontos”  da Voluntários da Pátria. Chegara ali muito jovem, nos dezesseis, vinda de Livramento, filha de um uruguaio de Rivera e de uma “profissional do sexo” do lado brasileiro. O apelido de “Paraguaia” nem ela sabia explicar. Talvez  se devesse pela sua competência em florear as nuances da música “Índia” nas apresentações no palco da boate.
                                  O dono do negócio tinha absoluta confiança na Paraguaia. Além de controlar com cuidado o consumo de bebida pelos clientes, tinha o dom especial de obter a coloração ideal do “Campari”, usando refresco de groselha, para que as gurias não se embebedassem e a casa tirasse um lucro a mais.
                                  -“Paga um Campari, bem?”  E lá ia o refresco de groselha com preço de “bebida internacional”.  Medida na garrafa, o refresco corria frouxo e a conta compensava, no fim, todo o esforço das gurias se pelando no palco.
                                  Foi num dia desses que conheci “Loco” Gualter.
                                  Chegou de mansinho, meio sestroso, abancou-se numa mesa lateral e ficou ali, observando o movimento da casa ir se avolumando com o andar das horas.
                                  Jennifer dançava agarrada num poste central, tendo como fundo uma cascata inundada de luzes multicoloridas que permitiam apenas uma visão dos contornos da dançarina.
                                  Três outras “dancers” tinham passado pelo palco, completamente nuas e em poses que fariam o coroinha da minha cidade abandonar definitivamente o ofício, por absoluta impossibilidade de retomar os votos de castidade necessários para o ingresso no Seminário.
                                  “Loco” Gualter permanecera imune àquelas elucubrações satânicas, provavelmente enviadas para testá-lo na convicção que tinha de que a missão que lhe fora confiada previa estas provações (a missão de Gualter será relatada num episódio à parte, com o objetivo de não se desviar o foco da presente narrativa, embora se possa afirmar que buscava um médico conhecidíssimo no Alegrete).
                                   Foi então que Jennifer entrou no palco e se agarrou no poste central, untado com vaselina para permitir a fluência da dança.
                                  O que aconteceu depois, só quem pode contar é a Paraguaia, que sempre se mantinha lúcida, pra tomar conta do negócio em nome do patrão.
                                  -“O Gualter aproximou a cadeira do palco e ficou ali, vidrado. Do jeito como eu só tinha visto nos olhos do meu pai quando encarou uma coral no meio da lavoura no Livramento: retesou o corpo e encarou a bicha como se o Juízo Final estivesse acontecendo ali, no meio do campo. A cobra baixou a cabeça, deu meia-volta e se embrenhou no mato prá não mais aparecer.
Jennifer fechou as pernas, foi largando devagar o poste de sebo e se recolheu para o camarim. O que aconteceu depois eu não sei, porque não vi. Dizem que o “Loco” Gualter invadiu o camarim, pegou a Jennifer no colo e saiu pela porta dos fundos sem me pagar a conta. Dias depois, um piá me chegou aqui de tarde, trazendo um cheque, no valor da despesa do Gualter e assinado por um tal de Walter qualquer coisa. Nem esquentei a cabeça porque o cheque tinha fundo.”
                                  Não sei como terminou esta história, mas continuo frequentando o bordel da Paraguaia que, outro dia me disse ter ido ao casamento do Gualter e da Jennifer na Igreja Nossa Terezinha, do Bom Fim. Segundo ela, o vestido da noiva foi o ponto fraco da cerimônia porque a deixou muito “barriguda”.
                                  
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 03/10/2012
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